quinta-feira, 10 de abril de 2014

antigamente era tudo diferente

Passaram as horas. O dia segurou-se entre nuvens carregadas e borrifos duma chuva miudinha a confirmar o boletim meteorológico. O tempo não tem culpa da minha preguiça de sair ao encontro de gente, coisas para fazer, p' ra distrair a mente e alimentar o espírito.
Para aqui me deixei ficar olhando o monte onde se passeiam cavalos brancos, parece são livres, pastando do verde da erva crescida à custa das bátegas que cairam no inverno que até parecia que tinham aberto todas as torneiras do céu, numa borla a que já não estamos habituados. À fartazana é o termo certo.
Antigamente o tempo passava mais devagar. Uma manhã demorava tanto a chegar ao almoço que a barriga ficava a dar horas e a boca a crescer-lhe água só de pensar. E as tardes? Essas provocavam sono, a gente inventava sonhos, enganava o relógio e quando chegava a hora de escurecer já estava farta de esperar a noite, o jantar, a conversa, o café, o abraço, a gargalhada, o telefonema. O amor e o descanso.
Antigamente era tudo diferente...
Passaram as horas. E no fim do dia, vesti-me de vontade, fui ao quarto buscar as calças de ganga rotas,
- essas calças são tão feias...já não és uma adolescente.
Disse-me, como um tiro disparado, mesmo a matar, a ver se me morria de vergonha e as arrumava num canto qualquer, mas não. Eu oiço tudo, lá isso é verdade, com a maior cara de pau do mundo e intervalos, mas só faço o que me apetece e por isso aqui estão elas, vestidinhas. Vesti também um camiseiro, adequado à minha idade ou o que isso for. Calcei os mocassins bejes que têm mais de quinhentos anos e que sobreviveram a verdadeiras guerras e batalhas de trazer por casa. Na verdade, sobreviveram à custa de tudo guardar no sótão, até macaquinhos. E conservá-los anos a fio.
Vestida, calçada, penteada e perfumada, rimel nas pestanas, o risco preto nos olhos,
- porque fazes esse risco por baixo dos olhos? Dá-te um ar mais pesado. Ficas melhor sem ele, mais nova.
Disse-me outro dia e eu apenas lhe sorri, encolhendo os ombros.
- Sou nova por acaso? Deixa-me com o meu velho risco que já é tarde para o tirar.
De forma que a ficar, faltou colocar o baton, que foi a última coisa que fiz antes de pegar na carteira e sair escada abaixo.
Tenho para lá duma mão cheia de batons, glosses e outros que tais; todas as cores e mais um par de botas e acabo sempre a pintar os lábios com os mesmos. Olho-me ao espelho e já não vou para nova. A cor da moda é linda, mas envelhece-me. Ninguém me disse mas eu sei.
Antigamente era tudo diferente...
Saio para a rua. O bafo quente d' um anoitecer encoberto só não me surpreende porque ouvi falar no tempo à apresentadora do programa da tarde.
Esta mania de plantarem laranjeiras nos passeios das ruas, nas terras portuguesas...
Já Alcanena as tinha, mas lá, não cheiravam a este aroma doce, a lembrar todos os antigamentes em que fui feliz. Já aqui o perfume da flor espalha-se e chega a mim como bálsamo para a solidão a que me votei neste dia, metade chuva, metade verão antecipado.
Entro no supermercado. E saio a olhar a conta. Sinto-me violentada. E não tenho forma de dar a volta a isto. Só se esquecesse a comida da gata, os detergentes, a fruta, o leite e mais umas coisitas que fazem parte dos bens de primeira necessidade.
Já é noite na rua. Olho o monte. Parece maior e mais habitado. Em frente, a ponte que liga uma terra a outra. Em baixo o IC. Centenas de carros, para lá e para cá. Milhares de luzinhas. E a A8, a caminho de Leiria. E por falar nisso, pergunto-me, quanto tempo ainda precisarei para atravessar a ponte tal e qual como subia ou descia o viaduto lá no Ribatejo, sem qualquer inquietação, tensão ou medo?
Há lugares que chamamos nossos. E há aqueles que mesmo não sendo nossos os conquistámos, ainda que não nos tenham conquistado a nós, completamente. E o viaduto está num lugar assim.
Quantos anos precisarei para chamar minha a esta ponte, minha, a esta terra entre a ponte e o monte, a duzentos metros das horas de ponta, a dez minutos da cidade grande? Quanto tempo precisarei para me cruzar com desconhecidos insuspeitos, não olhar de lado as sombras, não apressar o passo ao ruído súbito, ou não atravessar a ponte depois das nove?
Enquanto olho os lilases que ainda não se alilasarm, ocorrem-me os castanheiros junto ao rio, os jacarandás da avenida nova e as tileiras do quartel. E decido que um dia destes tenho de me pôr a caminho, faça chuva ou faça sol, porque já sinto saudades da serra, do castelo, do rio, da lezíria e dos afectos.
Enquanto não, vou percebendo a energia desta terra que escolhi para recomeçar. Um dia, a ponte não será um obstáculo nem uma necessidade. Apenas um meio para me ultrapassar. E ultrapassar o antigamente...

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