quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

uma história de amorzade

- ...e lembras-te quando pedias à tua mãe: Ó mãe dá-me uma coca-cola...dá láaaaaa, vai lá buscar...
Sorrisos meus. Mergulho o olhar nas suas palavras e nas memórias desses tempos distantes em que havia mãe. Havia a terra. 
Havia, nós, crianças brincando todos os dias. Uma com a outra. Como irmãs. Ali na Avenida, ali no Largo, ali na Vila Alice.
- Em que casa foi isso? perguntei eu. 
- Aquela ao pé dos Bastos. 
- Ah, pensei que era na outra. Na cubata, como o meu pai chamava. 
- Ah sim, a das mulembeiras. Sorrisos abertos. A saudade e o amor, no olhar trocado por nós. 
- ...e o Luís, o Armindo, o Américo, o teu irmão, que iam lá para o quintal à ginguba que o empregado assava ...
- Pois, eles saltavam as aduelas e iam buscar também o peixe frito; o Luís é que se lembra que era frito em...
E dissemos ao mesmos tempo, 
óleo de palma. O tempo a voltar... ainda a " cubata " ainda as mulembeiras, ainda o sabor, o cheiro, ainda todos nós, ali. O tio Augusto, o avô Carvalho, a mãe, o pai... 
- ...e lembras-te do Kaquito a pentear-se em frente ao espelho do quintal? Cheio de banga...( gargalhadas ), horas e horas. Era vaidoso, que só ele. E a morimba à entrada.
- Do lado esquerdo ( dissemos outra vez, ao mesmo tempo ), depois o armário e o cadeirão. 
E mergulhámos nas lembranças. Só nossas. Vividas por ambas em tempos tão antigos que facilmente seriam varridos, esquecidos, mas não de nós. Não por nós. 
- E o teu pai com a bomba do flit... e faço o gesto. Gargalhadas de novo.
E os sapatos pretos e brancos, picotados. E os quartos...
- E as balalaicas que ele usava...
- E quando mudaram de casa e ouvíamos a rádio brazaville às escondidas, muito baixinho...
Ouvi de novo o rádio fanhoso, vi de novo o sr. Eurico sentado à mesa. Atento ao que ouvia. Com ar de conspiração. Senti de novo o aroma do peixe cozendo no caldo. Da farinha de musseque misturada com o óleo de palma retirado com todo o cuidado da panela, onde, para além do peixe, coze também a batata doce e a mandioca. 
- E quando ias comigo até à esquina do largo com a Fernando Pessoa, onde moravam aqueles putos muito magros e altos a quem pus a alcunha de sputnik e ficávamos ali a falar, a falar, eh eh, depois eu ia contigo de novo até à casa do Armindo...
- E eu voltava a ir na direcção da tua casa, para te levar...
- Tínhamos assunto, aka!
Gargalhadas misturadas com um sentimento bom de saudade e nós de novo. Juntas. Noutra terra. Noutro país. Noutro século. 
Passado muitas décadas. Nós, outras pessoas. Maduras. Vidas diferentes.
Nós amigas, desde que nasci. Abri os olhos e ela estava lá. Com três anos. Falei as primeiras palavras e ela estava lá. 
Dei as primeiras quedas, chorei as primeiras lágrimas, ela lá. Ouvi as primeiras músicas e ela lá ouvindo-as comigo. 
Cantando juntas, batendo palmas, a caminho do Cazumbi. Na carrinha azul do avô Carvalho. Nos banhos de mar na Chicala. No quintal onde não faltava um pombal, um coradouro de roupa branca, a mãe Rosa lavando-a na celha, um carro antigo que já não andava, o galinheiro e o espelho do Kaquito, pendurado numa trave de madeira.
Nós aqui, lembrando a infância e a adolescência, o Percy Sledge, no my special prayer ou no love me tender e as conversetas sobre todas as inquietações e sonhos sentidos e sonhados,
- Sempre me lembrei de ti muito positiva, divertida, bem disposta, disse-me ela. Positiva eu? era mesmo? Eras pois. Eras assim, como és.
Quando na Antena 1 passaram aqueles programas sobre a descolonização, eu segui-os e ouvi a tua entrevista, num dos programas e reconheci-te pela voz. Olha a minha amiga Clara...gostei tanto de te ouvir...
- Mas a minha voz não mudou desde aqueles tempos de Luanda?
- Não, filha. Tá tal e qual. Na mesma.
A voz dela também. Reconhecia-la entre milhares de vozes.
Passeámos, almoçámos. Ficámos horas conversando. Dos tempos passados. Dos de agora. Como já não fazíamos desde o tempo da Vila Alice. Ela casou cedo. Depois veio para Portugal. Para o Barreiro. Onde se radicou. Voltámos a estar juntas muitos anos depois, na Marinha Grande, num almoço de gente daquele tempo, nossos vizinhos. Depois voltámos a ver-nos em Sintra para o mesmo efeito. E depois estivemos quase uma década sem nos reencontrarmos. O ano passado, no início do verão passei o dia com ela e sua família, no Barreiro, num período de doença minha, uma faringite que me deixou afónica. Pouco pude falar. Voltámos a estar juntas quando o Kaquito, seu irmão, veio dos Estados Unidos para umas curtas férias. Assim os amigos do Largo , o Luís, o Armindo, o Américo e nós, voltámos a juntar-nos. Nesse dia combinámos encontrarmo-nos sem interferência de outros. Só as duas. Como nos velhos tempos. Nós e a nossa amizade. Nós e as nossas memórias. A nossa intimidade. Dando beijos nos corações. Pronunciando palavras como abraços. No colo. Uma da outra. 
Aconteceu. Ontem. E voltei para casa de alma cheia.
Sou uma pessoa tão afortunada! Porque tenho uma amiga tão antiga quanto eu. Porque resgato tudo o que fui, o que vivi, o que fomos, como fomos, a cada encontro. Porque há alguém que gosta de mim quase há seis décadas só porque sim.
E eu pago da mesma moeda. Com o tal amor que nunca morre.

Amo-te o que a amizade que te tenho é capaz, Lisete. Tudo.

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