quinta-feira, 29 de dezembro de 2016

a culpa



Aqui da Europa, deste lugarejo pacato onde como, durmo, rio, choro, me entristeço, me amanheço e me animo, ou me espreguiço, escolho e avanço ou me deixo ficar com a liberdade do ser e estar, aqui onde tenho a raiz que me prende à casa, às pessoas minhas semelhantes, ao país, e asas para poder voar, aqui, onde vivo em paz e me sinto feliz, vejo Aleppo. 
Podia dizer que fanaticamente angustiada, mas mentiria. Podia dizer que nunca me sai do pensamento, mas seria cínica. Podia dizer que vou fazer algo para reverter a situação, mas sei que não o farei, não.
E sinto um vómito. Visceralmente falando. E sinto uma dor corrosiva. E sinto uma impotência devastadora. E sinto que há deuses menores. E desacredito. Na justiça. Na inteligência. Na compaixão. Nos homens. Em mim. Em ti. E no mundo. 
Ali não se fará Natal. Não chegará o velho das barbas brancas. Nem presentes. Ali nem os dias têm o direito de se marcar em cruz no calendário. Concretizados. 
Ali há braços caídos e lágrimas que não se choram. Palavras que não se articulam. E passos que não se dão. 
O futuro não existe e as crianças não se farão velhas. 
Não há poema que vingue. Gesto que ganhe sorrisos. Silêncios onde se tracem sonhos. Caminhos que se abram .Olhos que olhem de frente. 
Não há balada que se dance; nem braços que se aconcheguem em abraços. Pão que dê fartura. Chão onde nasçam flores. Sol que brilhe no céu. 
Em Aleppo, todas as Aleppos, a culpa não morre solteira. Vive nos senhores da guerra. E o mundo cada vez mais feio, triste e injusto. E o mundo cada vez mais perigoso. 

E desumano. Moribundo.


m.c.s. ( escrito antes do Natal )

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