Passavam uns minutos das oito quando cheguei à rua.
O ar fresco da manhã transportou-me para o Ribatejo e para o tempo da sirene da fábrica dos tecidos, que tocava pelas oito horas, alertando-me para a hora de sair de casa. Num vai-te embora mês de Agosto, beber o batido. Bater a porta. E num ver se te avias, toca a andar a subir seiscentos metros de viaduto a caminho da minha boleia para o trabalho, na vila vizinha.
A rua está limpa, o ar húmido e há ausência de pessoas a caminho do emprego. Leva-me a pensar que está muita gente de férias ainda.
O metro chegou um minuto depois de mim. Ainda assim a esta hora, a estação está cheia. Uns com a lancheira outros com o jornal, outros com chapéus de sol e sacos de praia e outros ainda carregando o corpo e a alma que ainda dorme a esta hora da manhã, a saber pela quantidade de pessoas que vai de olhos fechados, apenas os abrindo quando o metro chega à sua estação. Ou quem sabe os fechará para não aturar o vizinho da frente, que é um cusco, um atrevido, um mal educado, espaçoso, ou mal cheiroso. Um chato.
Chego ao Campo Grande em doze minutos. Espero mais quatro. Entro de novo e sento-me onde tenho lugar. Há vários, vazios. Na verdade confirma-se. Está tudo a banhos. Mais doze minutos e saio na estação do Rossio, saída da Praça da Figueira. Volto atrás para jogar no euromilhões. Mostro o último boletim. Tenho prémio. Oito euros e quarenta. Já o anterior tinha seis euros e tal. Não há duas sem três, dizem. Acredito. Um dia sai. De novo as lembranças do passado a bailarem-me à frente do presente. Sô Santos também acreditava. E jogava. E esperava. Um dia, sim, um dia sairia...
Atravesso a praça. Dois sem abrigo dormem ainda, deitados nos respiradores do metro. Os taxistas mais adiante, em círculo, conversam animadamente. O 15 pára para levar os turistas até Belém. Turistas e não só. Já o tenho apanhado.
Finalmente estou na rua. Agora é subi-la. Um cansaço. Fico com os bofes na boca mas não desisto. Disseram-me, ah porque podias vir amanhã fazer panquecas para o nosso pequeno almoço. Daquelas. De farinha de centeio. E eu aqui estou. Cinco minutos depois da hora combinada.
Toco três vezes. Toco sempre essas três vezes desde que somos família. Como um código. Descobri que usado por muitos filhos e muitos pais. Não faz mal. É o hábito. Não vou mudar.
Subo as escadas. De madeira antiga. Vem-me à memória a casa primeira aonde vivi, na rua dos Albardeiros, na então vila de Torres Novas, hoje cidade. Do Almonda. Vem-me à memória o pai, a mãe, a loja. As escadas onde caí num dia 26 tal como hoje, que faz 26 anos que Carlos Paião partiu, mas de Novembro, aniversário da mãe. E o açúcar, para o bolo que lhe ia fazer, espalhado. E eu a desmaiar. E a mãe assustada. Foi só um susto, mas nunca mais esqueci. A queda, a casa, as escadas, a mãe...
Subo degrau a degrau, que rangem debaixo dos meus pés. É um prédio de 1800 e tal disse-me o dono da casa num dia de aniversário de alguém. A porta abre-se. O sono espreita. Abro as janelas de par em par. O sol entra banhando de luz a sala que se espreguiça. Do prédio da frente uma voz ecoa num fado gemido, daqueles fados da desgraçadinha que não supunha, mesmo num bairro típico, fazer-se ouvir a esta hora da manhã.
O amolador de tesouras ouve-se também. Não o vejo nem à sua bicicleta. Sim, fazem-se sempre transportar numa bicicleta. Mais uma vez dou um pulo ao passado remoto, quando o mano Zé fugia a sete pés do som do instrumento do amolador de tesouras. Diz que quando aparece muda o tempo. Já mudou, dado que choveu durante a noite e no norte Deus a dá.
Começo a preparar a massa para as panquecas. Farinha de centeio, ovos, leite, raspa de limão e manteiga derretida. Não ponho nem açúcar nem sal.Tudo na liquidificadora.
Na mesa o doce de morango, a manteiga de amendoim, o mel, queijo, chá e pão de sementes.
Estão óptimas, disse. Olhei-a. E sorri. É disto que eu gosto...
Por isso venho lá do diabo mais velho, logo de manhãnzinha, para partilhar momentos. Em família. E um pequeno almoço com panquecas de farinha de centeio, quentinhas.
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