domingo, 3 de agosto de 2014

a Voz


A voz tem poder. Em mim. Comunicar é tão importante como respirar.
Com arte e beleza não é uma necessidade, é um prazer.
Por isso me rodeei sempre de gente que fala com talento. E a quem Deus deu o dom da comunicação e o timbre bonito, que me encanta.
Gostar de alguém é admirar. Pela voz também. Sobretudo pela voz se aproximam, me aproximo de pessoas.
Uma noite destas, estando a jantar num restaurante da cidade, ouvi uma voz que se destacava de outras. Conhecida. Marcante.
Olhei. Era um homem. Que não conhecia. Voltei a ouvi-la. À voz.
Algo me dizia que o homem eu não conhecia, mas a voz, sim. Voltei a olhar. E as suas feições não me eram estranhas. Um rosto de homem maduro. Feições grosseiras. Que se amenizam quando fala. Que o tornam interessante. Mas de onde é que eu conheço o dono desta voz fantástica que já se cruzou com a minha?
E foi uma inquietação. Pensei no Olival Basto. Não, ali nada é tão interessante. E se houvesse uma voz destas eu lembrar-me-ia com certeza. Percorri os meus lugares de visita, frequência em Lisboa e também não.
Gente de Angola...passei tudo a pente fino. E negativo. Aquela voz, naquele corpo, não cabia em nenhum dos angolanos que conheço.
Fui para Torres Novas. São muitos anos nesta localidade e muitas vozes me ficaram retidas. Gente que canta, que declama, que faz rádio, da política, do tribunal, advogados, juízes, arguidos, um sem número de vozes e rostos a desfilarem. E não.
Nada é pior do que sabermos que conhecemos algo e faltar-nos a lembrança que nos dá a chave do enigma.
A voz calou-se. O homem levantou-se com a sua família. Várias mulheres de idades diferentes. E crianças. Olhei-as também para tentar encontrar a ponta do nó. Não o desfiz. Nem quando ele me olhou. Será que me reconheceu também? Julgo que sim.
- De onde é que o conheço? Apeteceu-me perguntar, pois estava a tomar proporções assustadoras esta minha incapacidade para o reconhecimento e isso leva-me a outros detalhes preocupantes como sejam o do senhor alzheimer poder instalar-se.
Não perguntei. Faltava-me tentar Alcanena, local onde trabalhei mais de uma década. Com contacto com o público. Num quase tu cá tu lá com algumas pessoas que precisavam dos serviços. Mas este não era um " cliente " como chamávamos a quem nos caía na sopa a toda a hora pelos piores motivos, pois que o cliente do tribunal não é senão o tipo que não se tira de lá porque anda a contas com a justiça. Eu tinha a certeza que não. Aos " crónicos " nós não conhecemos pela voz, conhecemos pelo instinto. De sobrevivência.
Foi já em casa que de repente se deu o clique. E lembrei. Um economista duma empresa da região, que ali foi tirar registos criminais. E ficou à conversa comigo, pelas duas vezes que lá se dirigiu.
Reposto o reconhecimento, a voz vestiu o corpo e partiu. À sua vida. E eu deixei-a ir. Que gostar de vozes não me escraviza. Harmoniza-me.
Olhe, senhor economista, desculpe se não o reconheci. A sua voz não deixou. Ganhou proporções de estrela. Mas, uma vez que também tenho uma estrelinha que me protege e ajuda, aqui está. Cheguei lá, para meu sossego. E seu. Não fosse eu persegui-lo.

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