O Chico Careca, viveu nos nossos anexos, anos a fio. Tinha um bigodinho, entradas profundas na cabeça, cabelo ralo, seco de músculos e gordura, poucos sorrisos e piores falas. Vestia sempre camisa branca e calças escuras. Tocava acordeão.
Não comia connosco à mesa nem era a Lucrécia que lavava a sua parca roupa. Lavava-a ele. E cozinhava num fogão a petróleo na varanda, junto ao quarto.
Durante o dia esquecia-me dele. Acho que dormia toda a manhã. Não admirava. Era guarda-noturno. Ao fim da tarde, quando a Emissora Católica dava o terço, ouvia-o. Depois, preparava o jantar e comia-o em cima duma secretária rústica, de madeira maciça. O prato era de alumínio branco às flores com caneca igual.
Permitia a minha presença e a do mano Zé na varanda e até deixava que ficássemos na soleira da porta, quando acabado o jantar, agarrava no acordeão para tocar as músicas da Maria Albertina. Atitude que contrariava o que sô Santos e o Rocha Maneta diziam dele, o Chico Careca é ruim como as cobras.
Havia anoiteceres de distracção, sabe-se lá porquê e com quem, atrasando-se para a janta. Nessas alturas convidava-nos a comer com ele. O mano Zé nunca quis e eu também não. Sentia nojo do vinho a boiar na sopa de feijão entulhada de massa, cenoura, nabo e por vezes pão aos bocados, numa mistura asquerosa para as minhas entranhas. Quanto ao segundo, peixe, ou bacalhau cozido com batatas, hortaliça, feijão verde, ou, de vez em quando atum de conserva com batatas, cenouras, ovo e cebola. Tudo regado a muito azeite e algum vinagre. Comidas que abominava. Nunca o vi comer um bife com batatas fritas e ovo estrelado, como eu gostava.
Acordei enjoada. Abri uma das gavetas dos congelados. Nada me agradou.
Tenho andado a chá de bolbo, torradas com compota, fruta cozida e pouco mais. Abri o armário da mercearia e tinha uma lata de atum a sorrir-me.
Eureka! Terá dito a minha memória fotográfica. Contudo não me senti repugnada. Tacho ao lume, para cozer uma batata, uma cenoura, uma cebola e um ovo. Era mesmo isto que me apetecia. Comida simples. Como simples sou eu e são as minhas vivências, apesar de alguns desvios mais ostentosos acompanhando os tempos.
Fiz o prato. Temperei-o. E espreitei o Chico Careca à secretária de madeira com o meu prato pronto a ser degustado.
Passou mais de meio século desde então. O que terá acontecido ao homem que todos diziam ser um osso duro de roer, ruim como as cobras?
Nas idas para a praia, ao passarmos na Samba o pai apontava uma cubata junto d' um imbondeiro, pertinho do morro e dizia, o Chico Careca vive além. Dizem que se amigou com uma quitandeira.
Sentei-me. Entre lembranças, paladares e o presente. Almocei. E soube-me pela vida.
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