Amanheci abrindo os olhos assim como quem levanta as persianas daquela janela virada para os amanheceres de todos os outonos brigões. Ora com pedaços de chuva, granizo de empedrado transparente e violento, ora com vendavais vingativos, ora com sóis agressivamente quentes na urgência de mostrarem serviço.
Não sei dessas quezílias temporais nem quero adiantar-me. Os meus olhos abertos na mansidão dum domingo que promete, fixa os cantos do quarto, visíveis daqui. O meu horizonte está nessa limitação branca, nas barreiras. Sem fita métrica nem escadote não arrisco medir o ponto que vai d' um princípio ( aquele que olhei primeiro ) a um fim. Palmo a palmo percorro a parede, fazendo contas de cabeça. Um quarto é um quarto. Nos fundos da casa, num apartamento, numa moradia, num hotel ou num barco.
Um quarto é a nossa intimidade. Alma nua. Instinto, repouso e sobrevivência. Um quarto não é apenas o lugar aonde a gente dorme. É o nosso porto. Luta de (des)poderes. Alcova de anseios e clímax de sucessos. Libertinagem. Leitura. Dos nossos eus. Um quarto é um espelho. Imagens, quadros, filmes, tudo sem filtros.
Um quarto é o hoje puxando o cordel da memória, dando guita às lembranças, chamando espíritos de luz, espantalhando fantasmas como quem entreabre portadas viradas para o passado, que de tanto ter passado parece foi noutra encarnação, que me deixam espreitar. Pelo buraco da fechadura.
Embrulhada que estou nos lençóis brancos ( cada vez mais gosto de lençóis brancos como os do enxoval da minha mãe ), sentindo-lhes o cheiro a lavado ( parece de sabão azul e branco ) viro-me para o lado do coração. E as minhas forças da natureza maiores em dia de santo descanso de todas as angústias e medos parece me arrancam do fundo de mim e me gritam vitórias. E me incentivam a continuar neste trilho. E me dizem que não estou só na curva do caminho, naquele canto do quarto. Na limitação dos limites. Neste outono urgente em se outonar.
Amanheci assim, passeando-me preguiçosamente pelas margens de amores tão grandes como os rios maiores do mundo, que estão certos de ir abraçar o mar e levam muitos beijos para o adoçar. E enquanto vão e não vão, beijam também os barqueiros no seu navegar.
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