Quando descobriram que na Miguel Bombarda existia um homem que viera de Angola, foram chegando à loja, os retornados do burgo. Gente de Luanda e de outras paragens duma Angola em guerra. O ponto de encontro passou a ser à terça-feira, dia de mercado semanal na então vila. E a cada semana iam chegando cada vez mais. Uns na carreira, outros no velho automóvel que conseguiram fazer embarcar no porto de Luanda dias antes da independência e outros que eram da vila e se deslocavam a pé.
A mercearia do sô Santos passou a ser ponto de encontro e do petisco. Nas traseiras da loja assavam-se sardinhas, carapaus, entremeadas, febras, chouriços e farinheiras. Comia-se queijo e bebia-se vinho. Matavam-se as saudades da África que ficara para trás, recordando velhos tempos. Exorcizavam-nas.
Neste convívio não faltava o sr. João, um homem que conhecera o meu avô Carvalho em Moçâmedes e que vivia agora numa aldeia a caminho de Fátima.
De vez em quando trazia consigo o filho, uma criança mestiça, que eu nunca gostei da palavra mulato. Ouvira-a muitas vezes e sempre em tom depreciativo.
Como tudo na vida também os retornados das terças-feiras foram dispersando. Alguns foram para outras paragens, outros morreram e outros simplesmente deixaram de ter disponibilidade.
A minha mãe adoeceu. O pai trespassou a loja. E ficou cada vez mais sozinho.
Anos mais tarde, num tempo em que os oficiais de justiça trabalhavam por sua conta e risco aos sábados e domingos, fazendo notificações pelas aldeias da comarca aos " crónicos " ( aqueles que eram conhecidos de gingeira por serem reincidentes ), fui à aldeia do sr. João, retornado das 3ªs feiras. À procura de alguém a contas com a justiça. E dei-me com ele. E vi o senhor João chorar porque era uma vergonha eu estar ali à procura do filho. E ralhou com ele à minha frente como se ele fosse um cachopo.
Mais tarde, o rapaz meteu-se numa asneira maior e foi julgado. E condenado a pena de prisão substituída por multa que o sr. João pagou. Para que o seu filho não fosse preso.
Mais tarde ainda o sr. João morreu e o rapaz ficou sozinho. A mãe regressara a Angola.
Um dia foi preso. Praticara um furto. Era reincidente.
Foi julgado e condenado. Eu fui a funcionária de serviço à sala. Ele olhava-me como se eu fosse a sua tábua de salvação. Se calhar porque conhecera o seu pai. Se calhar porque era da sua terra. E era a única pessoa que ele conhecia naquele espaço de desconforto, agressivo mesmo . Havia pânico no seu olhar e uma profunda solidão. Era um homem. Novo. Pouco mais que um rapazinho. Que a guerra em Angola lhe mudara o destino, através dos seus pais.
Foi cumprir pena para o estabelecimento prisional da cidade.
Nunca mais o vi.
O ano passado, nesta época natalícia, passando junto a uma das pontes do rio Almonda ouvi uma voz conhecida, do alto de uma escada.
Pendurado numa árvore, montando as luzinhas de Natal, na rua, junto da Avenida do rio, estava o filho do sr João. O Zé.
- D. Clara, tá boa?
Fiquei contente de o ver.Tinha passado muito tempo desde aquela vez no tribunal. Disse-me que trabalhava para uma empresa contratada pela Câmara. Desejei-lhe boa sorte e Festas Felizes.
Hoje, a caminho do autocarro vi-o de novo. Muito perto do local do ano passado.
Trazia um gorro enfiado pela cabeça abaixo, luvas grossas e cachecol a tapar-lhe parte da cara.
Encaminhava-se para um automóvel, onde o aguardavam quatro indivíduos vestidos da mesma forma. Por deformação profissional, pensei que tinham todos aspecto de criaturas prontas para um assalto. Mas quem sou eu para julgar o aspecto de alguém?
- Tá boa D. Clara? disse-me, visivelmente satisfeito de me ver.
-Tou e tu, tudo bem?
-Sim, vou pegar ao trabalho.
-Então vai lá. Boas festas e Bom Ano.
-Para a senhora também.
Seguiu o seu destino. Aquele que traçou e o outro, o que traçaram por ele, quando os seus pais deixaram Angola " fugindo " da guerra. O Zé faz parte daqueles meninos que nasceram na guerra, na terra longe e viveram em luta permanente num terra que dizem, de paz.
Hoje entristeci pelos zés do mundo angolano a quem a vida não sorriu.
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