“Não quero que a minha casa seja cercada de muros por todos os lados nem que as minhas janelas sejam tapadas. Quero que as Culturas de todas as terras sejam sopradas para dentro da minha casa, o mais livremente possível. Mas recuso-me a ser desapossado da minha, por qualquer outra.” Mahatma Ghandi
Nasci em Luanda, de onde saí em 1975.
Toquei o céu com a ponta dos dedos quando voltei à minha terra em 2008.
Voltei a Luanda em Dezembro de 2009, e toquei o céu com as palmas das mãos. Foi o Paraíso. A minha terra é Linda!
Regressei pela terceira vez em Dezembro de 2010 e a minha alma foi tocada pelos céus.
A minha terra é única.
Maravilhosa!
E vai ficar ainda melhor...
Eu vivo nos bairros escuros
do mundo sem luz nem vida.
Vou pelas ruas às apalpadelas
encostado aos meus informes sonhos
tropeçando na escravidão
ao meu desejo de ser.
São bairros de escravos
mundos de miséria
bairros escuros.
Onde as vontades se diluíram
e os homens se confundiram com as coisas.
Ando aos trambolhões pelas ruas sem luz
desconhecidas
pejadas de mística e terror
de braço dado com fantasmas.
Também a noite é escura.
filmes da minha vida
Antes do Amanhecer
Antes do Anoitecer
o perfume
Midnight - Poison
Narciso Rodriguez
Quem me quiser
Quem me quiser há-de saber as conchas
a cantigas dos búzios e do mar.
Quem me quiser há-de saber as ondas
e a verde tentação de naufragar.
Quem me quiser há-de saber as fontes,
a laranjeira em flor, a cor do feno,
à saudade lilás que há nos poentes,
o cheiro de maçãs que há no inverno.
Quem me quiser há-de saber
a chuva que põe colares de pérolas nos ombros
há-de saber os beijos e as uvas
há-de saber as asas e os pombos.
Quem me quiser há-de saber
os medos que passam nos abismos
infinitosa nudez clamorosa dos meus dedos
o salmo penitente dos meus gritos.
Quem me quiser há-de saber
a espuma em que sou turbilhão, subitamente
- Ou então não saber a coisa nenhuma
e embalar-me ao peito, simplesmente.
Rosa Lobato de Faria
Luanda
Maracatu
Zabumba de bombos,
Estouro de bombas,
Batuques de ingonos,
Cantigas de banzo,
Rangir de ganzás...
— Luanda, Luanda, onde estás?
Luanda, Luanda, onde estás?
As luas crescentes
De espelhos luzentes,
Colares e pentes,
Queixares e dentes
De maracajás...
— Luanda, Luanda, onde estás?
Luanda, Luanda, onde estás?
A balsa do rio Cai no corrupio
Faz passo macio,
Mas toma desvio
Que nunca sonhou...
— Luanda, Luanda, onde estou?
Luanda, Luanda, onde estou?
Ascenso Ferreira
artesanato
em benfica
Ilha de Luanda
igreja de Sant'Ana
Caxito
Árvore de frutos
Cheiras ao caju da minha infância
e tens a cor do barro vermelho molhado
de antigamente;
há sabor a manga a escorrer-te na boca
e dureza de maboque a saltar-te nos seios.
Misturo-te com a terra vermelha
e com as noites
de histórias antigas
ouvidas há muito.
No teu corpo
sons antigos dos batuques à minha porta,
com que me provocas,
enchem-me o cérebro de fogo incontido.
Amor, és o sonho feito carne
do meu bairro antigo do musseque!
António Cardoso
Igreja de Sant'Ana
a nova igreja
cajú
Canção para Luanda
A pergunta no ar
no mar
na boca de todos nós:
- Luanda onde está?
Silêncio nas ruas
Silêncio nas bocas
Silêncio nos olhos
- Xê
mana Rosa peixeira
responde?
- Mano
Não pode responder
tem de vender
correr a cidade
se quer comer!
"Ola almoço, ola almoçoéé
matona calapau
ji ferrera ji ferrerééé"
- E você
mana Maria quitandeira
vendendo maboque
os seios-maboque
gritando
saltando
os pés percorrendo
caminhos vermelhos
de todos os dias?
"maboque, m'boquinha boa
dóce dócinha"
- Mano
não pode responder
o tempo é pequeno
para vender!
Zefa mulata
o corpo vendido
batom nos lábios
os brincos de lata
sorri
abrindo o seu corpo
- seu corpo-cubata!
Seu corpo vendido
viajado
de noite e de dia.
- Luanda onde está?
Mana Zefa mulata
o corpo-cubata
os brincos de lata
vai-se deitar
com quem lhe pagar
- precisa comer!
- Mano dos jornais
Luanda onde está?
As casa antigas
o barro vermelho
as nossas cantigas
trator derrubou?
Meninos das ruas
caçambulas
quigosas
brincadeiras minhas e tuas
asfalto matou?
- Manos
Rosa peixeira
quitandeira Maria
você também
Zefa mulata
dos brincos de lata
- Luanda onde está?
Sorrindo
as quindas no chão
laranjas e peixe
maboque docinho
a esperança nos olhos
a certeza nas mãos
mana Rosa peixeira
quitandeira Maria
Zefa mulata
- os panos pintados
garridos
caídos
mostraram o coração:
- Luanda está aqui!
(No reino de Caliban II - antologia
panorâmica de poesia africana de ex-
pressão portuguesa)
José Luandino Vieira
catavento
Um dia
Um dia
Um dia, gastos, voltaremos
A viver livres como os animais
E mesmo tão cansados floriremos
Irmãos vivos do mar e dos pinhais.
O vento levará os mil cansaços
Dos gestos agitados irreais
E há-de voltar aos nosso membros lassos
A leve rapidez dos animais.
Só então poderemos caminhar
Através do mistério que se embala
No verde dos pinhais na voz do mar
E em nós germinará a sua fala.
Sophia de Mello Breyner
Noite em Torres Novas
Navegar
Os dedos dedilham
harpas ou kissanjes
espírito eterno e palavras.
Eu não sei realmente
quem os comanda
e a poesia navega
por entre velames de mim
e dos muitos barcos
distintos onde aportei
naveguei o mesmo mar antigo
mas de périplos sempre distintos.
Depois de cada desembarque
escolho um outro barco
para nele voltar a navegar
por entre velames de mim
-dedilhando harpas ou kissanges
- solto dedos eternos e poesia...
Namibiano Ferreira
( gentilmente autorizado - blog Namibiano Ferreira )
castelo de gil pais
Circo
No circo cheio de luz
Há tanto que ver!...
"Senhores!"
-Grita o palhaço da entrada,
Todo listrado de cores
"Entrai, que não custa nada!
À saída é que se paga..."
O palhaço entrou em cena,
Ri, cabriola, rebola,
Pega fogo á multidão.
Ri, palhaço!
Corpo de borracha e aço
Rebola como uma bola,
Tem dentro não sei que mola
Que pincha, emperra, uiva, guincha,
Zune, faz rir!
José Régio, As Encruzilhadas de Deus
Caras ( Angola )
revista cor de rosa
A hitória da moral
Você tem-me cavalgado seu safado!
Você tem-me cavalgado,
mas nem por isso me pôs a pensar como você.
Que uma coisa pensa o cavalo;
outra quem está a montá--lo.
Alexandre O'Neill
rio almonda
serra de santa marta
conhecida por cabeça da velha
Não vale a pena pisar
O capim não foi plantado
nem tratado,
e cresceu.
É força
tudo força
que vem da força da terra.
Mas o capim está a arder
e a força que vem da terra
com a pujança da queimada
parece desaparecer.
Mas não! Basta a primeira chuvada
para o capim reviver.
Manuel Rui
religiosidade
acácia vermelha
Ausência
Ausência
Por muito tempo achei
que a ausência é falta.
E lastimava, ignorante, a falta.
Hoje não a lastimo.
Não há falta na ausência.
A ausência é um estar em mim.
E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus [braços, que rio e danço e invento exclamações alegres,
porque a ausência,
essa ausência assimilada,
ninguém a rouba mais de mim.
Carlos Drummond de Andrade, in 'O Corpo'
praia molhe leste
Dunas da praia Norte
Peniche
praia dos pescadores
fernando pessoa
"Eu amo tudo o que foi
Tudo o que já não é
A dor que já não me dói
A antiga e errônea fé
O ontem que a dor deixou
O que deixou alegria
Só porque foi, e voou
E hoje é já outro dia "
frança
O Amor
Estou a amar-te
como o frio
corta os lábios.
A arrancar-te a raiz
ao mais diminuto dos rios.
A inundar-te de facas,
de saliva esperma lume.
Estou a rodear de agulhas
a boca mais vulnerável.
A marcar sobre os teus flancos
o itinerário da espuma.
Assim é o amor:
mortal e navegável.
Eugénio de Andrade
em paris
Tédio
Ir levando no caminho
os amores perdidos
e os sonhos idos
e os fatais sinais do olvido.
Ir seguindo na dúvida das horas apagadas,
pensando que todas as coisas
se tornaram amargas
para alongarmos mais
a via dolorosa.
E sempre, sempre,
sempre recordar
a fragrância das horas
que passam sem dúvidas e sem ânsias
e que deixamos longe na estéril errância.
Pablo Neruda, in 'Cadernos de Temuco'
candongueiro
taxi colectivo
gaivota
Pensamentos
É necessário ter o caos cá dentro para gerar uma estrela.
Não eram meus os olhos que te olharam
Nem este corpo exausto que despi
Nem os lábios sedentos que poisaram
No mais secreto do que existe em ti.
Não eram meus os dedos que tocaram
Tua falsa beleza, em que não vi
Mais que os vícios que um dia me geraram
E me perseguem desde que nasci.
Não fui eu que te quis.
E não sou eu
Que hoje te aspiro e embalo e gemo e canto,
Possesso desta raiva que me deu
A grande solidão que de ti espero.
A voz com que te chamo é o desencanto
E o espermen que te dou, o desespero.
José Carlos Ary dos Santos
pitanga
Querem uma Luz melhor que a do Sol!
AH! QUEREM uma luz melhor que a do Sol!
Querem prados mais verdes do que estes!
Querem flores mais belas do que estas que vejo!
A mim este Sol, estes prados, estas flores contentam-me.
Mas, se acaso me descontentam,
O que quero é um sol mais sol que o Sol,
O que quero é prados mais prados que estes prados,
O que quero é flores mais estas flores que estas flores -
Tudo mais ideal do que é do mesmo modo e da mesma maneira!
Alberto Caeiro, in "Poemas Inconjuntos"
Heterónimo de Fernando Pessoa
Serra de Aire
A partir da Videla
História do Sr. Mar
Deixa contar...
Era uma vez
O senhor Mar
Com uma onda...
Com muita onda...
E depois?
E depois...
Ondinha vai...
Ondinha vem...
Ondinha vai...
Ondinha vem...
E depois...
A menina adormeceu
Nos braços da sua Mãe...
Matilde Rosa Araújo, O Livro da Tila
Igreja da Nª Senhora da Muxima
Na Muxima
Vale do Alvorão
A partir de Torres Novas
Génesis
De mim não falo mais : não quero nada. De Deus não falo: não tem outro abrigo. Não falarei também do mundo antigo, pois nasce e morre em cada madrugada. Nem de existir, que é a vida atraiçoada, para sentir o tempo andar comigo; nem de viver, que é liberdade errada, e foge todo o Amor quando o persigo. Por mais justiça ... -Ai quantos que eram novos em vão a esperaram porque nunca a viram! E a eternidade...Ó transfusão dos povos! Não há verdade:O mundo não a esconde. Tudo se vê: só se não sabe aonde. Mortais ou imortais,todos mentiram.
Jorge de Sena
Imbondeiro
que dá múcua
múcua
Lágrima de preta
Encontrei uma preta
que estava a chorar,
pedi-lhe uma lágrima
para a analisar.
Recolhi a lágrima
com todo o cuidado
num tubo de ensaio
bem esterilizado.
Olhei-a de um lado,
do outro e de frente:
tinha um ar de gota
muito transparente.
Mandei vir os ácidos,
as bases e os sais,
as drogas usadas
em casos que tais.
Ensaiei a frio,
experimentei ao lume,
de todas as vezes
deu-me o que é costume:
Nem sinais de negro,
nem vestígios de ódio.
Água (quase tudo)
e cloreto de sódio.
António Gedeão
Pintura
gengibre
Tempo das chuvas
Antes que venham
as primeiras chuvas
acender
Amarelas flores
entre os rochedos
E o céu se torne móvel
de compridos pássaros
E todo o chão se cubra
do verde novo
Do capim
Saberás pelo vento
que chegaste ao fim.
José Eduardo Agualusa
moamba de galinha
Regresso
Quando eu voltar,
que se alongue sobre o mar,
o meu canto ao Creador!
Porque me deu, vida e amor, para voltar...
Voltar... Ver de novo baloiçar
a fronde magestosa das palmeiras
que as derradeiras horas do dia,
circundam de magia...
Regressar...
Poder de novo respirar, (oh!...minha terra!...)
aquele odor escaldante
que o humus vivificante
do teu solo encerra!
Embriagar uma vez mais o olhar,
numa alegria selvagem,
com o tom da tua paisagem,
que o sol, a dardejar calor,
transforma num inferno de cor...
Não mais o pregão das varinas,
nem o ar monotono,
igual, do casario plano...
Hei-de ver outra vez
as casuarinas a debruar o oceano...
Não mais o agitar fremente
de uma cidade em convulsão...
não mais esta visão,
nem o crepitar mordente destes ruidos...
os meus sentidos anseiam
pela paz das noites tropicais
em que o ar parece mudo,
e o silêncio envolve tudo
Sede...Tenho sede dos crepusculos africanos,
todos os dias iguais,
e sempre belos,
de tons quasi irreais...
Saudade...
Tenho saudade do horizonte sem barreiras...,
das calemas traiçõeiras,
das cheias alucinadas...
Saudade das batucadas
que eu nunca via mas pressentia em cada hora,
soando pelos longes, noites fora!...
Sim! Eu hei-de voltar,
tenho de voltar,
não há nada que mo impeça.
Com que prazer hei-de esquecer
toda esta luta insana...
que em frente está a terra angolana,
a prometer o mundo a quem regressa...
Ah! quando eu voltar...
Hão-de as acacias rubras,
a sangrar numa verbena sem fim,
fllorir só para mim!...
E o sol esplendoroso e quente,
o sol ardente,
há-de gritar na apoteose do poente,
o meu prazer sem lei...
A minha alegria enorme
de poder enfim dizer: Voltei!...
Alda Lara
feijão de óleo de palma
Volúpia
No divino impudor da mocidade, Nesse êxtase pagão que vence a sorte, Num frémito vibrante de ansiedade, Dou-te o meu corpo prometido à morte! A sombra entre a mentira e a verdade... A núvem que arrastou o vento norte... Meu corpo! Trago nele um vinho forte: Meus beijos de volúpia e de maldade! Trago dálias vermelhas no regaço... São os dedos do sol quando te abraço, Cravados no teu peito como lanças! E do meu corpo os leves arabescos Vão-te envolvendo em círculos dantescos Felinamente, em voluptuosas danças...
Florbela Espanca
Moulin Rouge
paris
Talvez
Talvez não ser,
é ser sem que tu sejas,
sem que vás cortandoo
meio dia com uma flor azul,
sem que caminhes mais tarde
pela névoa e pelos tijolos,
sem essa luz que levas na mão
que, talvez, outros não verão dourada,
que talvez ninguém soube
que crescia como a origem vermelha da rosa,
sem que sejas,
enfim,
sem que viesses brusca,
incitante conhecer a minha vida,
rajada de roseira,
trigo do vento,
E desde então,
sou porque tu és
E desde então és sou e somos...
E por amor
Serei... Serás...Seremos...
Pablo Neruda
peniche
Destino
à ternura pouca
me vou acostumando
enquanto me adio
servente de danos e enganos
vou perdendo morada
na súbita lentidão
de um destino
que me vai sendo escasso
conheço a minha morte
seu lugar esquivo
seu acontecer disperso
agora
que mais me poderei vencer?
Mia Couto, in "Raiz de Orvalho e Outros Poemas"
albatroz
Endechas a Bárbara escrava
Aquela cativa
Que me tem cativo,
Porque nela vivo
Já não quer que viva.
Eu nunca vi rosa
Em suaves molhos,
Que para meus olhos
Fosse mais formosa.
Nem no campo flores,
Nem no céu estrelas
Me parecem belas
Como os meus amores.
Rosto singular,
Olhos sossegados,
Pretos e cansados,
Mas não de matar.
Uma graça viva,
Que neles lhe mora,
Para ser senhora
De quem é cativa.
Pretos os cabelos,
Onde o povo vão
Perde opinião
Que os louros são belos.
Pretidão de Amor,
Tão doce a figura,
Que a neve lhe jura
Que trocara a cor.
Leda mansidão,
que o siso acompanha;
Bem parece estranha,
Mas bárbara não.
Presença serena
Que a tormenta amansa;
Nela, enfim, descansa
Toda a minha pena.
Esta é a cativa
Que me tem cativo,
E, pois nela vivo,
É força que viva.
Luís de Camões (1524-1580)
Alentejo
Grito negro
Eu sou carvão!
E tu arrancas-me brutalmente do chão
e fazes-me tua mina, patrão.
Eu sou carvão!
E tu acendes-me, patrão,
para te servir eternamente como força motriz
mas eternamente não, patrão.
Eu sou carvão
e tenho que arder sim;
queimar tudo com a força da minha combustão.
Eu sou carvão;
tenho que arder na exploração
arder até às cinzas da maldição arder vivo como alcatrão, meu irmão, até não ser mais a tua mina, patrão. Eu sou carvão.
Tenho que arder
Queimar tudo com o fogo da minha combustão.
Sim!
Eu sou o teu carvão, patrão.
José Craveirinha
cacussos
Beijos-de-mulata
Os beijos-de-mulata
não têm perfume
Apenas
a limpidez do seu desejo
branco
Ou
uma concêntrica fúria
acesa de tacula-roxo-carmesim
além de ser
a melhor droga contra o câncer.
Pra que perfume...?
Onde elas crescem
morrem as outras plantas...
(17.5.86)
Arnaldo dos Santos
Licor Kizomba
Amor em paz
Eu amei
Eu amei,
ai de mim,
muito mais
Do que devia amar
E chorei
Ao sentir que iria sofrer
E me desesperar
Foi então
Que da minha infinita tristeza
Aconteceu você
Encontrei em você a razão de viver
E de amar em paz
E não sofrer mais
Nunca mais
Porque o amor é a coisa mais triste
Quando se desfaz
Quem os vê andar pela cidade
se todos estão cegos?
Eles se tomam as mãos:
algo fala entre seus dedos,
línguas doces lambem a úmida palma,
correm pelas falanges,
e acima a noite está cheia de olhos.
São os amantes,
sua ilha flutua à deriva
rumo a mortes na relva,
rumo a portos que se abrem nos lençóis.
Tudo se desordena por entre eles,
tudo encontra seu signo escamoteado;
porém eles nem mesmo sabem
que enquanto rodam em sua amarga arena
há uma pausa na criação do nada
o tigre é um jardim que brinca.
Amanhece nos caminhões de lixo,
começam a sair os cegos,
o ministério abre suas portas.
Os amantes cansados se fitam
e se tocam uma vez mais
antes de haurir o dia.
Já estão vestidos,
já se vão pela rua.
E só então, quando estão mortos,
quando estão vestidos,
é que a cidade os recupera hipócrita
e lhes impõe os seus deveres quotidianos.
Julio Cortázar
jardim das oliveiras
cais do sodré
Partindo
Triste, por te deixar, de manhãzinha
Desci ao porto. E logo, asas ao vento,
Fomos singrando, sob um céu cinzento,
Como, num ar de chuva, uma andorinha.
Olhos na Ilha eu vi, amiga minha,
A pouco e pouco, num decrescimento,
Fugir o Lar, perder-se num momento
A montanha em que o nosso amor se aninha.
Nada pergunto; nem quero saber
Aonde vou: se voltarei sequer;
Quanto, em ventura ou lágrimas, me espera
Apenas sei, ó minha Primavera,
Que tu me ficas lagrimosa e triste.
E que sem ti a Luz já não existe.
Eugénio Tavares
sumo de maracujá
marca nova
A gripe e os homens
Pachos na testa, terço na mão,
Uma botija, chá de limão,
Zaragatoas, vinho com mel,
Três aspirinas, creme na pele
Grito de medo, chamo a mulher.
Ai Lurdes que vou morrer.
Mede-me a febre, olha-me a goela,
Cala os miúdos, fecha a janela,
Não quero canja, nem a salada,
Ai Lurdes, Lurdes, não vales nada.
Se tu sonhasses como me sinto,
vejo a morte nunca te minto,
Já vejo o inferno, chamas, diabos,
anjos estranhos, cornos e rabos,
Vejo demónios nas suas danças
Tigres sem listras, bodes sem tranças
Choros de coruja, risos de grilo
Ai Lurdes, Lurdes fica comigo
Não é o pingo de uma torneira,
Põe-me a Santinha à cabeceira,
Compõe-me a colcha,
Fala ao prior,
Pousa o Jesus no cobertor.
Chama o Doutor, passa a chamada,
Ai Lurdes, Lurdes nem dás por nada.
Faz-me tisanas e pão de ló,
Não te levantes que fico só,
Aqui sozinho a apodrecer,
Ai Lurdes, Lurdes que vou morrer.
1 comentário:
Até gosto de Sardinhas, mas só costumo comer duas ou três. **
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