Subo para o autocarro a arfar. Corri no alto de uns saltos, uns 20 metros até à porta da viatura. O sr. margarido sorri com aquele ar já meu conhecido. Não sei o que lhe vai na alma, mas acha-me graça. Ou à pressa com que lhe chego. A senhora das terças-feiras tenta que eu passe sem embarrar no seu carrinho de compras, aos quadrados azul e branco sujo. Sento-me. O colar de pérolas que hoje coloquei, de tão comprido que é, estorva-me os movimentos. Não encontro o MP4, o que aliás é costume. Às vezes irrito-me por isso, outras como hoje, dou-me um desconto, que até encolho os ombros, chegando-me a frase batida - burro velho não toma ensino. Não é verdade. E eu sei disso. Por falar em burros, sendo hoje terça-feira, a cidade não mexe como outrora. No tempo em que os aldeões vinham à vila à terça-feira montados nas mulas, nos machos, ou nas carroças puxadas por burros. Arrepia-se-me a alma cansada. Dou-me conta de que sentir saudade é envelhecer um pouco. Ultimamente dou comigo a olhar o horizonte das minhas memórias, buscando o passado furiosamente. Navegam-me saudades de coisas pequenas. Simples. Ridículas...perdidas para sempre. Um mar de momentos de pérolas que não me enfeitavam esse tempo, que queria ver passado, que queria diferente. Interrompo os pensamentos calmamente. Afinal, nunca pertenci aqui. Saudades porquê? Saudades de mim?
Olho o autocarro silencioso. Dois miúdos do 12º ano foi o que restou de um ano lectivo a bordo de um autocarro, ouvindo-lhes as asneiras, sorrindo por dentro com as piadolas, comparando pessoas dessa idade às que conheço e me passaram pela vida. Distraindo-me com eles. Os outros, os adultos que trabalham na vila vizinha onde eu também trabalho estão mudos de enfado. E bocejos. E impaciência. Somos poucos. A menina que trabalha no hospital, a senhora que tem o marido na Irlanda, o Júlio que anda de autocarro o ano inteiro e depois faz viagens de sonho por esse mundo fora, as marretas; a Bela, e a outra, a que trabalha num restaurante de beira de estrada, meio caminho entre uma localidade e outra, o rapaz que trabalha na mesma aldeia, numa loja de tintas, e a senhora ucraniana que faz questão de me cumprimentar sempre que me vê, quando sai do autocarro, uma paragem antes da minha e que à 6ª feira me deseja bom fim de semana.
Somos poucos. As férias estão aí a espreitar, tal como o calor e o sol. Ainda não saímos da cidade e eu estou já saturada da manhã. Há dias, manhãs assim. Que não rendem. Nem nas lembranças. O mercado, hoje, que é terça-feira, já não é como era antes. Que durava o dia inteiro. E com 1 000$00 comprava meia dúzia de t-shirts giríssimas. Quem mas vendia era a Bia cigana. Coitada da Bia cigana. Parece um zumbi. O Zé cigano morreu-lhe e os dois filhos também. Ficou o Helder e a mais velha. O marido da Bia era uma figura de destaque no mercado. Um senhor. A certeza de que as minorias têm de ser aceites e integradas sob pena de sermos uns arrogantes miseráveis, cativos de preconceitos abomináveis.
Já nada é como antes. Já nem frequento os cafés, as pastelarias da cidade. Como sinto saudades dos bolos frescos da Abidis! Pastelaria meio snob onde os meus primos que nasceram neste lugar iam quando cá viviam. Eles também eram snobs. Recomendaram-ma quando cheguei à cidade para viver na mesma casa onde viveram os seus avós, meus tios. Quer dizer, tios da mãe Celeste. Quando aqui cheguei não conhecia ninguém. Entrar na Abidis, ambiente fechadíssimo, pelo braço do meu primo Artur era como entrar pela porta grande. Um homem giríssimo, um metro e noventa, moreno, voz bonita e piloto...Jesus maria! Era o aval que eu " precisava " para me aceitarem (?). Mas a Abidis eram frequentada por tudo o que era gente que gostava de bons bolos, para mal dos pecados do sr. manel, empregado da casa, que era racista, desconfiado e retrógado. Acabou os dias, por vontade própria, morrendo na solidão de uma vida sem qualquer prazer. A pastelaria era palco de queques, tias, betos, retornados como eu, que nunca gostei desse nome, pois se eu não estava retornando a coisa nenhuma, como é que me chamavam esse palavrão?! À 3ª feira a Abidis era frequentada até pelos velhotes das aldeias e pelas peixeiras do mercado que ficava ali ao lado, encostado ao tribunal. Invariavelmente a mãe do Torres, jogador do Benfica, (o grande Torres), entrava, cheirando a peixe, da sua banca. Para desassossego da neta, que ali estava comigo e com outras, e que era uma companheirona das discotecas. Do Bob's, que ficava na rua paralela à minha e era pertença do Alfredo um conhecido meu, compositor de mão cheia e dono de uma voz lindíssma, que nunca chegou adiante porque sempre acreditou que quem nasce para lagartixa nunca chega a jacaré e não valeu a pena eu incentivar à descoberta de outros mundos. O seu mundinho era um lugar apertado onde a viola quase não cabia e a voz não se reproduzia no eco de tons e sucessos, porque afinal era só um dom, não uma virtude.
Tenho saudades dos bolos da Abidis. Dos arrepiados, babás, du cheese, que chegavam de Santarém, na carreira dos Claras, empresa de camionagem de sucesso, sediada no burgo. E das limonadas, refresco de café e limão, e groselhas da pastelaria Império, onde trabalhava o sr. Alves, um homem castiço com que os rapazes brincavam por causa do seu jeito frágil e feminino.
Hoje, vou a caminho de mais um dia de trabalho mas não me apetece enfrentar o que aí vem. Apetece-me antes lembrar-me de que já vivi outras vidas que nem estas de hoje ou aquelas de Luanda, muito lá atrás nas minhas memórias.
Não sei porque me deu para isso. Quem sabe reencontrar a pessoa que também fui. Sem ressentimentos. Com alguma saudade. Estarei a envelhecer? Tenho dias que me sinto irremediavelmente velha e não me importo. Hoje é um desses dias.
1 comentário:
já vi que viaja com uma " família " no autocarro, as pessoas que conhece de vista. Eu também vivo na aldeia, dentro da cidade, onde ainda se diz boa tarde ou boa noite, aos vizinhos mais velhos e não só. **
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