" O meu pai formou-se em agronomia. Naquele tempo, acabou o curso com 23 anos. Era muito esperto. Não quis ficar cá. Foi para África. Gostava muito do campo, das plantações e dos animais. Lá ficou. Casou mais tarde com a minha mãe, por procuração. Veja lá que a minha mãe viveu 30 anos em Portugal, foi para Angola e viveu mais 30. Voltaram em 1975. E ninguém diria, mas ainda viveu outros 30, de novo aqui. Foram muito felizes, os dois. Um com o outro e em África..." Estas palavras ouvi-as ainda agora, aqui a um metro de mim, a um homem muito bem falante, com uma dicção perfeita, uma maciez na voz, deslumbrante, e uma segurança de quem conta histórias verdadeiras há muitos anos, sem que seja interrompido. Tem um anel de curso. Pedra vermelha. Não sei o que quer dizer. Qual a sua formação académica. Nunca ligo para cachuchos denunciadores de aprendizagem com sucesso nas faculdades. E denunciadores de vaidade também. De imposição aos outros de uma ridícula forma de estar na vida. Muitos dos anéis que vimos por aí são exibidos por gente que depois de adulta foi estudar e conseguiu, não digo que não, com mérito e sacrifício o seu canudo, mas porque diabo havemos de exibir isso como um troféu? Já me estou a ver a andar de balança em punho só porque é o símbolo da justiça e a mandarem-me ter juízo porque não sou juiz, e não cursei...Estou a caminho de um dia de mãe com a filha, pois ao filho vou vê-lo por um canudo, que está longe. E no autocarro que vem de Castelo Branco e se dirige a Lisboa com paragem em Torres Novas, é que tenho estado a ouvir a conversa desta pessoa bem falante e educada que recorda o pai e a mãe, neste dia especial de afectos. É um homem de mais de setenta anos, e cabelos todos brancos, porte elegante, que viaja sozinho e conversa com o indivíduo que vai no banco de trás, um engravatado com ar de boa pessoa que se inclina para a frente de forma a ouvir com clareza o que o narrador de histórias verdadeiras vai dizendo a quem o narrador chama doutor. Não sei porquê mas lembra-me o meu avô. Pai da minha mãe. O avô Carvalho. Como este senhor, também ele contava histórias fascinantes, de uma Angola profunda, pelas estradas e lugares por onde passou e foi ficando, e outras mais antigas, da sua terra e do tempo da tropa no Ribatejo. " O meu pai vivia nas plantações de bananas. Chegou a ter sete espécies diferentes de bananas. E de tabaco também. E criticava os colegas agrónomos que passavam os dias a despachar no gabinete, no meio dos papéis, não pondo em prática a sua formação. A minha mãe trabalhava no laboratório. Reformou-se em 1975. Ficou com uma reforma 3 vezes menor que a do meu pai. Mas chegava. Ela foi feliz. Amava muito o meu pai. E ele a ela. E ele a ela...viajavam muito. Gostavam do campo. Iam muito para a Suiça. E para a Dinamarca. " fez uma pausa. O outro aproveitou para falar um pouco do que ia fazer a Lisboa. Falaram de ruas, restaurantes, jardins e pracetas que ambos conheciam. O contador de estórias viveu em Benfica. Falou do acontecimeno mais recente. A queda do granizo. E do Colombo. " não gosto muito de centros comerciais. Talvez por ter sido nascido e criado no campo. De vez em quando vou comer um hamburguer com batatas fritas ao Mc Donalds. Ahahahah! aquilo não fará muito bem mas eu gosto, muito de vez em quando. " Uma delícia ouvir este senhor que me faz lembrar o avô Carvalho. Aposto que o avô também seria capaz de se sentar comigo no Mc para um menu à maneira. E a mãe também. Há viagens assim, tão boas, tão deliciosas, que nem sequer liguei o MP4. Quero ouvir tudo o que esta pessoa sábia tem para dizer. Simples no discurso. Calmo no timbre. Sábio. Saudoso no falar das raízes. Dos pais. Da mãe. Hoje dia da mãe. Estou quase chegar a Lisboa. Passàmos há pouco o Campera. Viajaria aqui no meu canto, ouvindo esta voz macia, até ao Algarve, até Sagres. Até aonde não houvesse mais terra para viajar. É nestas alturas que me é dado perceber com mais lucidez que um avô faz muita falta. E uma mãe também. Toda a falta do mundo.
domingo, 1 de maio de 2011
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