Acordei com vontade de fazer um piquenique. Daqueles à séria. Porque eu sei o que isso é. E gosto de pensar que gostava, afinal de contas. Já não me lembrava que se fazem piqueniques. O tempo, as vontades puxando-nos para outros campos, outras praias e outras pessoas, apagam-nos a memória das coisas simples e bonitas como reunir à volta de uma manta, de uma toalha no chão ou numa mesa de pedra e bancos corridos e olhar as nossas escolhas, de frente mas sem jogar ao sério. Divertidamente. E falar, e contar histórias, e jogar às cartas, e ouvir música e comer.
Há piqueniques e piqueniques...
Os que se fazem junto ao mar são os verdadeiros encontros connosco, com os outros e com a Natureza. Digo eu que me estou a ver em preparativos. Véspera de domingo, à noite. De observadora apenas.
O pai matou o cabrito ou o leitão. Para o grande acontecimento que é ir passar o domingo à praia, debaixo dos coqueiros. Nas Palmeirinhas. Depois do Controle da polícia.
A mãe faz bacalhau albardado e prepara o tacho para o arroz de frango que fará assim que o sol raiar. O mano Zé brinca com os vizinhos Mário e Vitoca. A caçula anda de volta das saias da mãe e eu olho desanimada a gaveta do guarda vestidos. Comprei sozinha um biquini cor de vinho, lá na baixa, na Pereira Forjaz. Ficou-me no ponto. Queria exibi-lo, como se fizesse passagem de modelos. Da manta para a beira-mar. Da beira-mar para os coqueiros onde o pai, a mãe e o primo Fernando estarão a fazer uma sesta e esperando que a digestão se faça também.
Mas desisto do biquini. O pai não me deixa usá-lo. Que pouca vergonha! Onde já se viu? Filha minha de cuecas e sutien! Nunca, mas nunca, estás a ouvir? E eu mastigando as lágrimas, numa fúria quase descontrolada, que eu tinha o feitio dele, respondia entre dentes que um dia ia usá-lo e ele não poderia impedir-mo. Em silêncio jurava vingar-me da proibição. No fundo eu sabia que ele não me queria " provocadora " ( achava ele ), por causa dos " gabirus " e dos outros. Os adultos como ele, aqueles que eram do " puto " e que nos conheciam e que poderíamos encontrar nessa coisa descontraída que era passar o domingo à praia e fora de Luanda. O que o pai não queria era que eu fosse mal falada. Tudo por causa de um biquíni... Jesus, Maria!
Eu tinha forma de o usar. Na Ilha. Nas férias de Março, quando ia com a Fatinha Garnacho e a Dulce, à boleia da Marginal para lá. Nos mini-jipes, porque nós até escolhíamos o carro que nos daria boleia, bem arejados e visíveis dos outros, para o caso de correr para o torto e, não fosse o condutor ter ideias . Ou com o Borges da Cunha, o amigo professor de ginástica e comentador desportivo, que era de Nova Lisboa mas vivia em Luanda e tinha um Ford Capri com uma buzina espampanante, linda de morrer. Vingava-me do pai e desses piqueniques " fatelas " em que tinha hora para comer, ir para a água, e quer quisesse quer não, tinha de fingir que gostava de dormir a sesta. O mês de Março era de arromba e só não podia bronzear muito o rosto para que o patriarca nem sequer desconfiasse das minhas exibições na praia em frente à Floresta com gente da minha idade, livre e feliz, aprendendo a dar umas braçadas, o suficiente para não me sentir inferior perante um verdadeiro nadador, cheio de músculos e de energia e para quê mentir, rodeado de meninas bonitas como nós éramos à época. Também, ninguém tinha 16, 17, 18 anos. Éramos umas princesas e sabíamos disso. Insuportáveis portanto...
Mas o reinado, não funcionava nos piqueniques de domingo. Em família! Que piroso! Achava eu... O primo Fernando, que tinha um carro amarelo com uma risca ao meio preta, abria as portas, punha as cassetes a tocar e saía música do Roberto Carlos, Nelson Ned, Teixeirinha, Silvinho, Ângela Maria e a pedido, isso é que eu embirrava, fados. Da Amália Rodrigues, Teresa Tarouca, Alfredo Marceneiro, Tony de Matos. Vêm-me desse tempo, as letras todas de cor dessas músicas ouvidas ao domingo em regime de clausura mais ou menos consentida que era, e isso eu tinha direito, sentar-me dentro do carro, no lugar do pendura, com o braço todo de fora, na banga, dando umas baforadas do LM do Fernando, à socapa do patriarca e com consentimento da mãe e o silêncio do Zé e da caçula. O meu primo Fernando era divorciado e passava todos os domingos em nossa casa. Era um bacano, talvez mais velho que eu, uns 18 anos mas muito moderno e despreconceituoso.
Quando passava a hora da digestão do leitão assado, arroz de frango, bolos de bacalhau, ah pois, o bolo de bacalhau não podia faltar ( e eu que abominava todas aquelas comezainas ) e doces, era uma festa. Já eu estava na areia olhando o mar, lá longe, sonhando com uma vida livre e bonita, a vida que queria para mim e acreditando, e vinha a ordem da soltura anunciada pelo mano Zé.
Podemos tomar banho! Ufa! Finalmente!
Já toda a gente chapinhava na água salgadíssima fingindo saber nadar, gritando pelas picadas das alforrecas, dando mergulhos exibicionistas, boiando dentro das bóias pretas, enormes, ( câmaras de ar dos camiões), atirando água e areia aos outros...enfim, uma alegria. Domingo...
Ainda havia o lanche com coisas boas que a mãe fizera, o relato do Benfica, e depois a arrumação de tudo e a partida para Luanda. Se fosse cedo, íamos à Ilha dar uma volta. Mesmo até ao farol e depois rumávamos a casa.
Hoje, apetecia-me fazer um piquenique à maneira, tipicamente familiar, com raízes transmontanas e beirãs em terras de praias azuis e verdes, com biquini ou não, mesmo vestida até aos pés e fazendo tudo a que me negava nesse tempo áureo da minha adolescência em que vivia na minha terra, os domingos eram passados em família e tinha 16, 17, 18 anos talvez...
Estarei hoje a sentir-me velha ou apenas nostálgica? Se calhar as duas coisas...
É que entrei num tempo em que já não é senão o tempo do uálálá...
domingo, 6 de junho de 2010
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3 comentários:
ainda há muito tempo pela frente, clarinha.
gostei do teu relato, enterneceste-me. parabéns.
já nem me lembrava das ditas «bóias»....ahahahaha eram o máximo, e a ginástica para nos mantermos em cima delas???? e depois ficavamos «assados» em baixo dos braços......k saudade, bons tempos........não tamos velhas somos apenas mais maduras......
Que lindo Clarinha, gostei muitode ler este texto, fez-me lembrar esses tempos, tão parecidos, com os meus. As idas a praia, os piqueniques.... até as idas de boleia, eu e as minhas amigas... Sempre adorei as idas à praia, parece que ainda sinto o cheiro daquele mar, a ilha, o mussulo, as vezes a Corimba, e mais raramente o morro da Cruz (acho que era este o nome).
Os teus textos, volta e meia trazem-me recordações que estavam escondidinhas, bem hajas amiga. Um beijinho
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