Acordei cedo. Ninguém em casa. Na sala um bilhete. Preocupações e recomendações.
A minha amiga foi ali e volta já. Trabalhar.
Tenho imensas voltas para dar e ainda queria ir à piscina de tarde.
Espero o Sr. Tiago e enquanto chega e não chega, chega-me o pregão das quitandeiras, as businas do automóveis e o bater metálico das obras que estão sempre em actividade.
Ninguém se pode sentir sozinho nesta cidade. Há sempre sinal de vida, ainda que não seja da nossa.
Não quero dramatizar, só porque estou de partida daqui a dois dias. Tem sido muito bom estar em Luanda. Viver Luanda. Viver-me.
Não fui desta vez uma turista em férias na sua cidade antiga e tentando adaptar-se à nova cidade e à nova vida dos cidadãos desta terra que não são de todo apenas luandenses. Fui antes alguém que olha tudo com o olhar de quem já conhece mas que se encanta ou desencanta com o que lhe é dado ver. E penso que, tal como estou diferente também tudo me foi dado ver de forma diferente.
Estou praticamente de partida e estou bem.
Hoje espera-me, se acaso o sr. Tiago chegar, um encontro marcante com as raízes.
O cemitério de Sant'Ana. Na estrada de Catete. Na campa da avó Rosalina das Dores Pais.
Ontem fui à igreja de S. Paulo. Foi a primira vez que desabei à séria, desde que cheguei. Não sou uma grande católica. Nem pratico. Só vou a missas por intenção. Falo com o meu Deus. Queixo-me muito. Se calhar é a entidade que me ouve mais queixas. Agradeço-Lhe todos os dias. Confio-Lhe a minha vida e o meu presente e futuro e Acredito Nele. Mas igrejas, padres, missas não são bem o meu modo de vida. Tirando a basílica dos Mártires no Chiado, que me serviu muitas vezes de refúgio num tempo mau que não quero recordar agora.
Mas S. Paulo é outra coisa. Reza a história que pertenço ali, hoje bairro do Sambizanga, do Sanguila com carinhosamente lhe chamam. Fui baptizada na Missão de S. Paulo, ao lado da Igreja. O mano Zé também. Os nossos registos estão ali. A caçula foi baptizada na igreja nova.
Ia à missa aos domingos à tarde, missa das seis. O padre Luís é que me confessava.
Aquela igreja fala comigo cada vez que ali entro. Pinta as cores duma infância e adolescência felizes por entre cânticos de esperança. Abraça-me e me pega ao colo. Oiço-lhe a voz amiga segredando-me futuros que quero viver, conselhos que quero escutar e fé no amanhã.
Ir a Igreja de S. Paulo e mais do que ser católica, turista ou curiosa. É receber a benção.
O sr. Tiago não aparece. Marcámos às 8,3o horas. Começo a ficar inquieta.
Deixei as visitas mais importantes para o fim. De propósito.
Tem estado a chover num chovisco invernoso a emitar o europeu.
Quero viver Luanda até ao fim. Até deixar de ver as luzinhas lá em baixo, quando subir aos céus de regresso à minha vida real. E vou conseguir...
Finalmente ouvi a campainha. É o sr. Tiago que se anuncia. Vou entregar-lhe a chave e pedir-lhe cinco minutos, depois desço a caminho da estrada de Catete. Não sei porquê, ou sei, estou nervosa, inquieta e sensível mais do que nos outros dias. Vou ter de me segurar. Os meus antepassados puseram-me cá e sempre recebi a mensagem de que dos fracos não reza a história. E não que seja pretenciosa, mas, gostava que um dia alguém da minha família pudesse contar que...
Era uma vez, em Angola, na cidade então de S. Paulo de Assunção de Loanda, nasceu uma criança do sexo feminino, de sua graça Maria Clara das Dores...
1 comentário:
Que forma bonita encontraste para te despedires do lugar e das pessoas que te fazem feliz.
Bonito texto maria clara.
Parece que tbm eu me estou a soltar aos poucos dessa terra.
Parabéns. És uma grande mulher.
Bjos
Enviar um comentário