Quando chego de viagem não desfaço logo a mala.
Esse encanto de viajar não o quebro assim do pé para a mão. Como com a árvore de Natal. Eh pá, tanto trabalho que dá e logo a seguir ao Reis temos de esquecer tudo até que recebemos os presentes que ficaram de companhia com tão bonita ornamentação, catratapiscando com ela, a bem dizer num namoro descomplexado e cheio de brilho e luz ...
Oiço vozes azocrinando-me os ouvidos e a paciência, como que dizendo - deixa-te de truques maria clara, és mas é uma preguiçosa. Ou - porque estás a dizer coisas que não têm nada a ver com os pensamentos? Onde é que queres chegar se tu és daquelas que dizes - Cheguei, ainda te pensam a quilómetros de distância?
Bem, não sei se estou rodeandoo assunto dissimuladamente, tipo hiena. Não quero transformar em presa nada nem ninguém, nem a mim sequer, agora, que admiro as minhas amigas dos aviões, que chegam e partem, e fazem e desfazem malas e sacos e dias e sonhos, isso admiro sim. Uma até me disse um dia destes enquanto estávamos de molho numa piscina imensa, em domingo de calor como só ali, que viajar é crescer, então, para quê desmanchar a prova do crescimento assim do pé para a mão? Não pode.
Porém já me desmanchei de africana. E tive de passar rapidamente ao disfarce de europeia. Não com as roupinhas da mala porque são de verão, mas com as que ficaram. Vestida até ao pescoço que até o cachecol quis ter uma conversinha de ao pé da orelha comigo, me dizendo soprando vento frio no meu ouvido .
- Vamos a usar-me, vá. Ontem não saltei da gaveta porque fui teu amigo, não estás em Luanda, minha. Qual é? Desmancha as malas, arruma as roupinhas reduzidas. Cai na real.
Não obedeci de todo mas, voltei à roupagem de sempre. Botas até ao joelho, calças de ganga que não vesti lá do outro lado do tempo, por via do calor húmido que faz colar a pele no tecido quente que até abafa, casacos compridos, camisolas e cachecois. Dos faladores e dos que não estão nem aí para me darem confiança, " tens frio? Enrola o cachecol no pescoço e caladinha que é inútil queixares-te, que eu já te atendo já, espera sentada".
Mas só eu sei, e não sou capaz de fazer o desenho para ninguém, o calor que conservo armazenado, dentro do meu peito. O paladar que até fez feliz, a Lourdes da avenida Brasil, mãe das meninas loiras, do Vasco e do Alfredo do S. Vítor da Tasca. Com quê? Com quê? Com um doce de coco daqueles que fugiram dos fiscais e que o sr. Tiago foi correr atrás até conseguir apanhá-los.
E tenho a certeza de que ontem quando o Alfredo se lhe apresentou com o doce ficou como eu há muitos anos atrás quando ela me apareceu com feijão de óleo de palma e caldo de peixe com farinha de pau bem vermelhinha do óleo que lhe misturou. Nas nuvens.
Mas não só conservo o calor e o paladar, como a cor morena que até uma miúda que já tentou ser mal educada comigo, no TUT " através " de um dia de chuva em que entrei com o chapéu a pingar e fiquei junto dela que estava sentada de costas para a estrada num lugar que não é banco e me disse " Veja lá se tira daqui o chapéu porque pode aleijar-me com ele " e que levou de volta " E você veja se sai desse lugar que é proibido e fica assim fora do perigo que o meu chapéu representa ", hoje me olhou como se me arremeçasse pólvora que ainda nem descobriu e disse para a do lado " Olha a cor da mulher ". Se não fossem uma miúdas ainda lhes fazia uma careta e dizia " Uooooooooô, bem feita, não tens".
Mas ainda conservo a tolerância que me restou das minhas férias em Luanda e apenas sorri para dentro.
Pois é. O inverno está aí apesar dos dias serem maiores que é algo que anseio sempre neste início de Janeiro tendo caído em mim logo no dia que cheguei de Luanda quando a kanuca me tocou à porta e a vi de casaco comprido. Ambas acabadinhas de chegar do quentinho que apenas exigia o mínimo de roupa e já disfarçadas de europeias.
Faço isso com a rapidez de quem vai para a passerele, porém o meu coração, esse, aiuê, desconsegue deixar de ser africano.
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