sexta-feira, 6 de agosto de 2010

avó Clara


Veio muitas vezes à fonte. A esta fonte. Encher os cântaros de água.
E passou a fonte, a cavalo no burro, a caminho das Fontainhas, orgulho de todos e que não era senão um pedaço de terra rica e de água abundante,que lhe pertencia, onde trabalhava de sol a sol para que nada faltasse aos filhos. Muitos.
Naquele tempo, em Trás-os-Montes, perdida na solidão e no abandono de uma região pobre e distante da capital, a população não tinha recursos; água canalizada, casa de banho, luz. Apenas os bafejados pela riqueza, mas que não era o caso.
Gouveia, uma aldeia do concelho de Alfândega da Fé, igual a tantas outras, que ficavam para lá do Marão, foi o lugar onde ela nasceu e viveu quase toda a sua vida. Ela era uma senhora. Tinha um porte de rainha. Do alto do seu metro e setenta e tal, dominava todos os que a rodeavam sem sequer falar. E todos a respeitavam e a amavam.
Vestia-se de preto. Lenço na cabeça, atado no queixo,deixando a descoberto um rosto de pele alva e uns olhos pequeninos e cinzentos. Lábios finos e nariz aquilino.
As pernas, de verão e de inverno tapava-as com meias pretas opacas. O tronco direito e alinhado vestia austeramente.
Ouvia falar dela desde que me lembro de existir. Nutria uma grande simpatia pelas diversas imagens que o pai saudasamente me passava. E a cada história que ouvia eu ambicionava vir à Metrópole só para viajar até à Gouveia e conhecê-la.
Dela tinha o nome. Clara. E o sangue. Porque era minha avó.
Por volta dos meus doze anos chegou-me a notícia. Ela iria a Luanda visitar a família. Os filhos que lá tinha, que eram quatro e as noras, duas, que não conhecia. A minha mãe e a tia Fernanda. E os netos. Eu, o mano Zé e o Paulo. A caçula e o João nasceram, para sua alegria, quando já se instalara em Luanda.
Foi um tempo estranho, aquele que viveu em Luanda. Eu tinha um avô, pai da minha mãe que conhecia desde a barriga da minha mãe. Esta avó, acabada de chegar, interferia na minha adolescência. Instalara-se no meu quarto e eu passara a dividir tudo com ela. Depois ficou doente. E eu terei sido muito mais do que ela esperava de mim, pois muito mais tarde, aqui em Portugal, soube que elogiava a minha conduta. Não fiz nada de especial. Nada que não fizesse no meu dia a dia de miúda inquieta com o corpo que mudava e com os pensamentos que a mais de mil assaltavam a minha imaginação. Ela era um ser rude e forte e não estava habituada a alguns cuidados e mimos, quando a doença a fragilizou.
Havia um certo orgulho em mim quando me diziam, quem a conhecia, que eu tinha o mesmo génio dela. Talvez por isso, consegui que ela vestisse de azul escuro, reduzisse as mangas para curtas e tirasse o lenço e as meias. Só o carrapito não consegui cortar-lho. Não por ela, mas pelas pessoas da aldeia dela, ali onde o Judas perdeu as botas mas onde as notícias chegavam e a Senhora Clara seria apelidada de doida, hoje, ganda maluca, se acaso voltasse com um corte de cabelo moderno.
De vez em quando ela tomava-me o pulso e eu a ela. E por várias vezes virámos as costas uma à outra, capazes de nos engolirmos. Eu era uma miúda mal educada e respondona. E não gostava que me tomassem conta da vida e ela tentava.
Um dia, num domingo, por causa da caçula fui mal educada, e o pai ouviu as suas queixas. Levei uns tabefes, que apenas doeram o tempo de a ver chorar pelos cantos, relevando as queixinhas, porque a vi mais sofrida que eu própria. Já não podia passar sem ela, mesmo quando não nos entendiamos.
Ao fim de 3 anos achou que estava na hora de voltar à santa terrinha e já ninguém a calava. Tinha três filhos, à espera. E muitos netos. E os maridos da filhas e a mulher do filho mais velho de todos.
O amor por ela nasceu naturalmente e floriu. Recordo o dia que a fomos pôr ao barco que a traria a Lisboa. E não foi fácil. A minha caçula adorava-a e foi difícil arrancá-la do seu colo. E eu, quando ela subia as escadas do barco, senti que partia alguém que eu amava muito e que provavelmente nunca mais veria.
Vi-a em 1975. Fiquei na sua casa de Trás-os-Montes um mês. Depois em 78 fui passar uns dias com ela. E vi-a pela última vez em 1980. Em Torres Novas, onde esteve algum tempo.
Se estivesse aqui fisicamente, hoje faria anos. Na casa dos noventa e tal.
Sei desta data como sei muitas outras. E sei que pela primeira vez na vida, soprou velas no dia de aniversário, porque eu lhe fiz um bolo e o enfeitei de farinha custarda e pêssego em calda, receita da Crónica Feminina, revista que saía todas as semanas e que a minha mãe lia religiosamente.
Tenho saudade desse tempo. E de ter avós. E da avó Clara, minha xará, que com muito carinho e orgulho vim aqui, hoje, recordar.

1 comentário:

anónimo disse...

Gostei de ler a homenagem que à tua avó. BJS