domingo, 11 de julho de 2010

na tela

Olho a cidade. Em contemplação. Gosto de terras grandes. A perder de vista. Com o mar a ilimitá-las.Olho as folhas movidas pelo vento. Ganhando asas.
Na chávena do café a marca do baton. Porque raio as mulheres maduras pintam os lábios mesmo que na praia? Sei porquê, mas não me apetece falar nisso. Fica para outra vez.
Ao longe o barco à vela. Velejando ao sabor da calmaria. Quase imóvel, portanto. O balanço parte das ondas, que vêm enrolar-se com a areia num abraço namorado a cada vez que se ondulam.
E a gaivota, fazendo parte deste cenário, passa veloz em busca de peixe.
Hoje é domingo neste lugar.
Olho o horizonte, azul, verde esmeralda. Para além da linha dourada.
Páro a película. A preto e branco. Muda, numa conversa de surdos.
Contemplo a cidade colorida de vermelho sangue das flores de acácias. Vou a caminho da Ilha. Na carrinha azul, do avô. Para a Chicala. Passei a fortaleza, que ficou para trás. Já estou na ponte. O avô agora curvou à esquerda. Junto aos restaurantes.
Paramos no nosso lugar de sempre.
Salto a correr da carrinha e vou molhar os pés. As ondas vêm beijar-me as feridas. Arde muito mas a água acalma-as. Já ninguém mais pára a minha traquinice. Chapinho feliz, livre. Abro os braços e corro para o avô que já se empoleirou numa rocha. Calças arregaçadas. Chapéu de coco na cabeça e pés descalços. O ritual de sempre, no lugar de sempre e eu como sempre...
O avô parece um polícia sinaleiro. Falta-lhe o apito para me fazer stop. E a farda de caqui com galões e fivelas. E o capacete de chefe de posto e as luvas brancas. Afinal, falta-lhe quase tudo.
O cenário está montado. Os pescadores enrolados em saias de panos coloridos, com turbantes na cabeça, fumam uns cigarros grossos forrados de folha de árvore castanha, enquanto remendam as redes de pesca. Os dongos estão parados.
Hoje é domingo. Já fomos ao cemitério da estrada de Catete pôr flores na campa da avó, eu ajudei com o regador a regar as flores dos vasos pequenos. Já fomos aos Correios à caixa postal, e comprar o jornal, que o avô se prepara para ler. Pôs os óculos. Não há vento e vai poder ler as noticias. Quando sairmos da praia, vamos parar na Mutamba. Em frente à Fazenda Nacional, para engraixar os sapatos nos engraxadores que páram ali. Vou ouvir outra vez kimbundu. O avô gosta de falar com eles essa língua que ainda não consigo decifrar, mas gosto de lhes ouvir.
A manhã está fresca. Corre uma aragem que parece que vem do mar. Parece até que vem aí o cacimbo. Estamos no tempo dos maboques e dos tambarinos. Vem até mim o cheiro das massarocas a assar e do bombô. Deus queira o avô compre uma massaroca para comer com manteiga. Vou-lhe pedir com jeitinho, que com jeito vai. Ele compra.
Vai dizer: Não digas à tua mãe Clarita, senão almoçares, vai ralhar comigo.
Gosto tanto deste avô!
Páro a película. A cores e ao vivo...ainda e para sempre.
Daqui a pouco o sol do meio dia vem abraçar-me com o seu calor.
Caminho devagar ao encontro do presente. Calma e feliz.
Chamo o passado e ele vem. Páro-o e ele permanece em mim. Chamo o presente e ele se dá como presente e até oferece o banco para que o passado se instale comodamente.
Em harmonia. Nesta cidade à beira mar plantada...

2 comentários:

Bolinha disse...

Que lindo....que ternura...como é bom ter recordações tão bonitas e saber partilhá-las desta maneira.

Maria Clara disse...

Obrigada, querida Bolinha. Se um dia conseguir ser a avó que este avô é para mim, serei uma pessoa muito, mas muito feliz. Ele está presente na minha vida desde que nasci. Vive em mim. Tenho tanta pena que não viva nos outros, nele e na vida...era um sobrevivente. Um vencedor. Um ser humano muito sábio e especial. Quem me dera, ser como ele.