terça-feira, 26 de julho de 2011

recuando às raízes de mim

Não sou avó. Dirão alguns que já vão sendo horas. Não penso nisso. E não sou o relógio das crias. Nem sei se terão esse apelo pela descendência. Para já. Se me perguntarem se queria ser avó, queria sim, queria muito. Nunca penso nisso. Mas hoje, dia dos avós, fico em êxtase perante a idéia de uma, duas criaturinhas, ou mais, muitas mais ( duvido ) entrando na minha vida. A precisarem de mim. A contar-lhes estórias da minha terra, das suas terras, das terras dos seus pais. A levá-los à escola. A fazer-lhes bolos e papas, tapioca, flocos e nestum. A levá-los ao cinema, ao teatro e aos espetáculos de dança. A ensiná-los a ler e a escrever. A desenhar. Levá-los a Luanda para sentirem o cheiro da terra, do mar e do amor. A aprender com eles...a ser avó. Fico em êxtase sim.
Tive avós. O avô Francisco, a avó Clara, a avó Rosalina das Dores e o avô Carvalho. Conheci-os todos. Não é verdade? É sim. O sô Santos se encarregou de falar tanto do pai dele que eu sabia que era mais baixo que a avó Clara,( esta, era alta ) que era duro que nem as rochas de Trás-os-Montes, que trabalhava de sol a sol, que foi caseiro de uma quinta no Sendim da Serra e que a avó Clara, os filhos e quem vivia ali na Gouveia e arredores que eram muitas léguas para lá do rio Sabor, até à raia de Espanha onde ia negociar gado, a cavalo em cavalos ou em burros, mulas ou machos, lhe tinha um respeito e admiração profundas. Porque era muito sério. Homem de palavra. E amigo do seu amigo e da família então, nem se fala. Conheci sim, o avô Francisco, que nem sei se algum dia chegou a descer até ao Porto. Talvez, porque sempre ouvi dizer que era um visionário. No dia que chegou a carta a Luanda, aquele envelope com uma fita preta a denunciar o luto da família, deitado na sua cama, agarrando na missiva que a avó mandara escrever a alguma neta, talvez à Leonor, que pela sua esperteza já se advinhava que ia ser professora primária, sô Santos chorou, soluçou, quieto no seu sofrimento mas não disse uma palavra. A mãe é que se apressou a dizer perante a minha estupefacção, que o avô tinha morrido. Eu tinha talvez 8 anos. Depois as camisas brancas do pai passaram a ter uma barra preta numa manga, não sei qual, a que se chamava, fumo. Se eu conheci o avô Francisco? O que é que acham? Conheci sim.
E a avó Rosalina das Dores? Quando a minha mãe entrou na loja do meu pai, seu vizinho, ali na avenida brasil, à época, rua do saber andar, e este com aquele jeito malandrão, bonitão, de olhos doces e sorriso branco e lindo se meteu com ela, a minha mãe agarrou numa batata da caixa, e atirou-lha acima. E a avó Rosalina praguejou. Mas praguejou feio para proteger a sua filha ainda menina de 16, 17 anos. Era uma mulher alta e magra. Vestia de escuro e usava o cabelo apanhado numa banana, muito na modao. Uma verdadeira senhora. Habituada que estava a viver e conviver com a sua madrinha, senhora de sangue azul, que vivia num palacete com brazão, na aldeia de Vilar lá para a serra do Caramulo, ela que era de canas de senhorim. O sô Santos logo nessa primeira abordagem escreveu nos céus, fazendo futurologia que ainda havia de ser seu genro, o que enfureceu até à medula a avó Rosalina e divertiu a mãe, que não passava de uma menina franzina, envergonhada e linda. A avó adoeceu depois. E sofreu muito. Um cancro na cabeça atirou-a para o hospital e morreu antes de vir a ser sogra do sô Santos. Conheço a avó Rosalina do pai falar dela com muito carinho e dor. Conheço a avó da mãe falar dela sempre de lágrima no olho. Do avô me levar ao cemitério todos os domingos e ver a sua fotografia na campa. De me achar parecida com ela. Até hoje. Conheço a avó e quando vou a Luanda vou visitá-la ao cemitério da estrada de catete, ao cemitério de sant'ana, nome da santa que por acaso hoje dia dos avós também é o dia dela ( da santa ). E sinto uma paz santa a cada vez que ali vou. Depois de 33 anos voltei ao lugar onde ela tem a última morada física, sem que alguém me orientasse. No dia 10 de Setembro. Um dia especial para mim. Por outros motivos e também este. Conheço a avó Rosalina? É claro que conheço.
E a avó Clara? Ouvi sempre falar dela. Uma espécie de rainha. Uma matriarca. Uma mulher alta, elegante, cabelos pretos num carrapito, olhos pequeninos cinzentos, nariz bonito, lábios finos e tez branquíssima. Trabalhava no campo e em casa. Na sua horta, que se chamava a horta das Fontainhas. Foi caseira da quinta juntamente com o avô Francisco. Teve 1o filhos. Dois deles morreram pequeninos e eram gémeos. Era a cozinheira de serviço nas festas da aldeia e era tratada por senhora Clara com a deferência de não lhe chegarem perto porque era uma mulher de forte personalidade, directa, altiva e decidida. Se a provocassem nunca mais se meteriam com ela. Era um mulher com pêlo na venta. Tinha filhos preferidos. Admirava muito o pai e a tia Margarida e contava muito com eles. Protegia o tio Fernando como uma galinha o faz. O tio Zé era o primeiro e por isso havia ali um afecto especial. O tio zé manel, acácio, celeste e augusto estavam ao mesmo nível no afecto. Eram todos filhos e ela gostava de os ter debaixo da sua asa. Tinha algumas amigas na aldeia. E uma em Lisboa onde ia de vez em quando. Um dia disseram-me que a avó ia para Luanda uma temporada. Adorei a idéia. E foi. E foi difícil. O meu temperamento e o dela chocaram-se. Diziam que éramos parecidas. Adoeceu e foi mais difícil. A caçula era bebé e adorava-a e eu adorava a caçula. A relação dela com a minha mãe foi muito boa e o meu pai andava feliz. Os tios também e eu habituei-me a dividir. Consegui que usasse um vestido azul escuro e pusesse de lado o preto e que tirasse as meias opacas. Consegui que ela se risse à gargalhada e hoje gostava que ela aqui estivesse para lhe sentir o colo. Quando eu tinha 15 anos voltou para Portugal porque tinha cá os seus outros filhos. Que eram apenas 3. A Margarida, a Celeste e o Zé. Os restantes estavam em Luanda e apenas o Zé Manel estava em Moçambique. No dia em que a fomos pôr ao Príncipe Perfeito, barco que a trouxe para Lisboa, a caçula chorou sofridamente ao colo dela e depois ao meu colo enquanto lhe diziamos adeus, já ela estava no barco acenando com o tradicional lenço branco. E eu chorei com a caçula. Vivi na sua casa, um mês em 1975, na aldeia de gouveia, em trás-os-montes. Esteve em torres novas na nossa casa aind auma vez. Estive com ela depois em 77, 78, porque fui visitá-la e foi a última vez que a vi. Foi uma grande mulher a minha avó Clara da Assunção.
O avô Carvalho...o avó Carvalho é o avô de todos os avós. Os outros que me perdoem. O avô carvalho é o avô que tenho como exemplo. Como eu gostaria de ser para os netos que possa vir a ter. Ele foi muitos. Ele foi tudo. Com ele não tinha falta de ninguém. Nem de mãe nem de pai. O avô Carvalho mora em todas as memórias da minha infância. Em todos os sábados. Em todos os momentos felizes e noutros menos felizes, também. Mora desde que me lembro de existir. No pão espanhol de sábado à tarde. Na manhã de domingo, na Chicala. E nos correios da Baixa. No cemitério regando as flores com o regador cinzento. No clube de caçadores. Nas ida às salinas, a caminho da barra do Kuanza. Nas manhãs que o ia chamar a casa gritando, até ficar rouca, o seu nome, antes que aparecessem os sipaios a quem eu temia. No balão de hélio comprado na feira popular onde íamos. Nas noites sentados no patim da " cubata " olhando a rua e as pessoas que passavam e emitando o jornaleiro " olhó diário " e ele dizia, diz: Olhó diabo, e eu repetia, olhó diaaaaabo. Na carrinha azul que rolava por Luanda fora. No dia de natal que fomos levar o almoço ao tio Augusto, que estava de serviço na fortaleza de São Pedro da Barra e vi pela primeira vez, homens negros, mortos, pelas bermas da estrada, estávamos em 1961 e começara o " terrorismo ". Na nota de 500 escudos para uns sapatos a estrear no meu aniversário. No rádio a pilhas vindo de Porto Alexandre. Na fotografia em cima da ponte do Locala. De outra, de capacete numa fábrica de peixe em Moçâmedes. Numa folha de welwisthia que levada do deserto para que eu a conhecesse, essa planta única, do deserto do Namibe que ele contava que atravessava num mini-jipe. No colo, quando o mano Zé nasceu. Nas cartas que me escrevia. Nos natais. Na atitude aparentemente fria ( a minha família é assim ) quando chegava e na mágoa com que ficava quando se despedia. Nos dias alegres e brincalhões, muito conversados e historiados desde que chegava até que partia. No internamento na casa de saúde de Luanda e no casaco que eu e o pai lhe fomos comprar porque não trouxera agasalho nenhum de Moçâmedes. Naquela vez que tememos que tivesse morrido por lermos no jornal o seu nome, sem fotografia, na página das participações de defuntos o que obrigou o pai a ir à mortuária que ficava a seguir ao hospital maria pia, para reconhecer o cadáver e a ansiedade que foi esperar pelo pai. A carta dizendo que não sairia de Porto Alexandre, apesar da independência do país estar a chegar. Depois outra a dizer que estava em Moçâmedes. E outra a dizer que estava no Algarve e que fizera a viagem mais louca da sua vida, numa traineira, de Moçâmedes para a África do Sul e daí para o Algarve. Depois, em Lisboa. E depois ainda em Vilar. E em Torres Novas, quando casei. E por fim em Tondela. E tenho muita dificuldade em falar do fim. E não quero.
O meu avô foi um herói. O meu herói. Homem bonito. A minha família tem gente bonita. Alto. Nariz fino e direito. Olhos malandrecos e sorridentes. Mãos bonitas e voz bonita. Sotaque do sul de Angola. Conhecia os dialetos quase todos. Até aquele dos estalinhos. Sem vícios. Não sabia fumar e quando o fazia não travava o fumo e parecia um sapo engasgando-se. Bebia cerveja preta e gostava de comer. Tinha um humor refinado, ao estilo inglês. Inteligente, perspicaz e corajoso. Era um autodidata que surpreendia e encantava com o seu saber acerca de tudo o que é importante saber e não só. Era imensamente respeitado e por alguns, até temido. Na avenida brasil e no largo camilo pessanha todos o admiravam. Tenho encontrado amigos de infância mais velhos que eu, que recordam o Sr. Carvalho com saudade e traçam pormenores da sua personlidade que os marcaram. Ele mora nas memórias de muita gente e isso enternece o meu coração.
Hoje é dia dos avós. E eu que não sou avó, mas tenho o nome das duas, sei o que é ter os melhores avós do mundo.
S
into que as minhas raízes são sãs e fortes e acredito que eles fizeram com que eu possa vir a ser a melhor avó do mundo.

1 comentário:

maria disse...

Que delícia, Clarinha!