Há dias difíceis. Bota difícil nisso, apetece-me dizer. Se isto aqui fosse um diário, hoje, eu ia dar uma surra nas palavras até exorcisar este dia.
A dificuldade está na nossa cabeça, dirão os sabichões destas coisas, que estão nos livros. Eu que não estudei estas conclusões, também acho. É uma intuição que tenho. Mas ainda assim, o coração deixa-se levar. Afinal, onde anda o meu coração? Bate-bate e torna a bater, por ele, por mim e por tudo o que eu amo, desprezo, anseio, sonho. Bate porque sou e por que não sou. Porque me alegro e porque me choro, e também porque me conformo. Bate rápido, bate lento que até acordo a pensar que vai sair pela boca ou que não está, já, a bater. Palpita, se agita e me prega sustos. Me sorri, mas não hoje.
Acordei na hora marcada. Enganei-me. Era para ser uma hora mais tarde. Quando dei por isso estava sentada no muro do tribunal onde estagiei. Onde trabalhei, muito. Onde jurei por minha honra cumprir com lealdade as funções que me foram confiadas. Onde ouvi presos e mais presos, horas e mais horas, noite fora, madrugada fora, de coração apertadinho. Onde conheci alguns magistrados, que ficaram para sempre no meu coração. Onde vivi a minha gravidez por duas vezes, e onde deixei de fumar dois maços por dia, assim num estalar de dedos num Maio de 1985. Onde o tempo passou por mim e eu nem dei pelo tempo.
A Noémia é que me viu. Ó, olha a Clara!!! E eu levantei-me e fui cumprimentá-la. Devem ter passado uns 12 anos desde que a via ali todos os dias, bebia café ao seu lado no café da frente e falávamos muitas vezes. Ela era da conservatória. Sempre bonita mas mais magra. Muito mais magra. E envelhecida. Perguntou por todos. E voltou a fazer um Óoooooo desta vez escandalosamente surpreendente. Fomos beber café enquanto a minha colega não chegava para irmos então para alcanena. Quando a Noémia chegou junto de mim, estava eu a pensar que não tinha saudades do meu primeiro tribunal. Nem subi. Já não conheço uma grande parte da gente que ali trabalha e os que conheço estão de férias. Mas o edifício, esse fala comigo. Lembra-me coisas. O coração bate-me mais alvoraçado. Estarei eu para sempre presa ao passado ou estas coisas são assim mesmo? As paredes a lembrarem-nos. As escadas a chamarem-nos. O mastro da bandeira, a saudar-nos. A janela do gabinte do juiz, como sempre aberta a recordar-nos destinos, nas diligências fora de horas, fora de pagamentos de horas extraordinárias, dentro do espírito que existia naquele tempo. O cheiro. Os eternos cheiros a dizerem-nos que já ali vivemos parte da vida, que não podemos renegar. É o cheiro do que já passou, a querer misturar-se nas nossas memórias num compartimento que se chama saudade. A Noémia que chegou. E que foi igual à de sempre e que me fez ser a de sempre, mais do que a de sempre. Mais atenta. Mais presente. Mais livre. Menos culpada. Não fosse ali a casa da justiça.
Quando finalmente me despedi da Noémia que estava verdadeiramente contente de me ter visto deste jeito, ( que não vou dizer, porque posso parecer vaidosa ), e que me surpreendeu, porque não ser normal as mulheres serem assim umas para as outras, mas a Noémia sempre foi diferente e não deve saber o que é inveja, fiquei com pena de a ver partir ou de partir eu. Afinal não tinha saudades mas já ali ficava. Afinal aquela foi a minha casa anos a fio, aquelas foram as minhas pessoas, aquele foi o meu tempo. E hoje, há muitos anos também eu parti de outra casa. Aquela que era verdadeirmente minha. Talvez por isso estou mais sensível. Apesar da dificuldade estar na nossa cabeça o meu coração está pequenino e atrofiado.
O dia passou igualzinho ao meu coração. Às seis menos dez já estava pronta para regressar a casa.
O autocarro chegou. Desde que as férias judiciais começaram, somos menos. As minhas boleias estão de férias. O autocarro voltou a ser o meu transporte de manhã e à tarde. A Bélita já lá estava. Apressou-se a desocupar o banco para que me sentasse à sombra. Estava sem paciência para ela. Deus queira que não me diga nada, pensei, a fazer figas na minha cabeça que se fosse com os dedos, cusca como ela é dava por isso e levava a mal. Então a senhora perdeu a camioneta? Não. Vim mais tarde. Ah, eu bem disse a elas. A senhora tem o meu número, se estivesse atrasada telefonava ( como se ela atendesse; já precisei e fiquei apeada ), mas olhe que ainda disse ao motorista para esperar um pouco, veja lá que só saimos às 8,25. E ele foi devagarinho; quando deu a volta à rotunda ainda olhámos mas a senhora não vinha lá.
Valeu-me a chegada do autocarro. O motorista era uma daquelas criaturas que parecem ex-jogadores de futebol, ex-treinadores, claro com a excepção do Mourinho e do professor Queirós, evidentemente. Ex de qualquer coisa. Será que sou eu a alucinar ou este homem perde-se pelo presente como se tivesse ficado lá atrás? Será que só eu dou por isso? A figura de arrumadinho do século passado é tão escandalosa que não estranho, e até me diverte, pois que neste fim de dia, bem preciso de uma distracção. Um relógio amarelo, óculos de sol, emitação barata de uns ray ban, e nem um fiozinho do cabelo fora do lugar. - Vai para onde? Torres Novas. Viu-se nas amarelas para me tirar o bilhete, eu sei que é um embaraço para eles esta forma de adquirir o bilhete, usando o cartão, mas o contrato existe. Lá acertou com o bilhete e até esperou que eu lho entregasse já preenchido. Depois foi um ver se te avias que é uma pressa. A criatura pôs o pé no acelerador e só parava para as passageiras sairem. Surpreendente foi levantar-se a cada paragem para desejar boas férias às passageiras que vinham de Minde, e trabalham numa fábrica de confecção. A uma delas, até deu dois beijinhos, talvez a conhecesse. Cheguei mais cedo mas muito enjoada, dele, das passageiras que falavam pelos cotovelos nas férias que vão gozar, da paisagem, da música que saía do rádio ( estação local que provoca vómitos como os relatos de futebol em carro em andamento ) e confesso que até vinha enjoada de tanto enjoo junto.
Fiquei na garagem. A Pitanga fez-me ir para o centro da cidade à procura de lata de lascas de atum com camarões. Sim porque esta gata não faz a coisa por menos. Embirrou com o pescado com espinafres e mesmo com fome, não come. E dei comigo a discutir manias de gatos, com outro pobre de cristo que se queixava do mesmo que eu e não fosse a capacidade de me rir de mim própria e desataria num pranto, pois que jamais imaginaria que um dia o meu tema de conversa seria gatos, seus apetites e manias. Fui então a caminho de casa debaixo da torreira do sol e carregada que nem uma burra. É mesmo o termo. Uma burra que podia estar tão bem e anda para aqui sem poder com uma gata pelo rabo, estupidamente carregada, que as minhas hérnias um dia destes não gritam, berram e eu que não posso ficar doente não saberei resolver isto, pois quando assim foi até tinham de me vestir, que eu não era capaz de o fazer.
Todo o caminho fui a pensar na minha sina, tão cheia de pena de mim, mas tão cheia, que a minha sorte foi não me ter cruzado com alguém. Malvada terra! Como é que eu não me cruzei com ninguém capaz de ler no meu rosto o desalento, a saturação e a necessidade que tenho de ir embora?
Hoje não é bom dia. Hoje é um dia de partidas. E de chegadas. De viagens.
Mas eu não parto nem chego. Espero. Sentada. Aborrecida. Inconformada. Espero que outro dia chegue. Talvez mais apaziguado. E que não esteja assinalado como um dia que me tornou uma pessoa menos feliz.
A dificuldade está na nossa cabeça, dirão os sabichões destas coisas, que estão nos livros. Eu que não estudei estas conclusões, também acho. É uma intuição que tenho. Mas ainda assim, o coração deixa-se levar. Afinal, onde anda o meu coração? Bate-bate e torna a bater, por ele, por mim e por tudo o que eu amo, desprezo, anseio, sonho. Bate porque sou e por que não sou. Porque me alegro e porque me choro, e também porque me conformo. Bate rápido, bate lento que até acordo a pensar que vai sair pela boca ou que não está, já, a bater. Palpita, se agita e me prega sustos. Me sorri, mas não hoje.
Acordei na hora marcada. Enganei-me. Era para ser uma hora mais tarde. Quando dei por isso estava sentada no muro do tribunal onde estagiei. Onde trabalhei, muito. Onde jurei por minha honra cumprir com lealdade as funções que me foram confiadas. Onde ouvi presos e mais presos, horas e mais horas, noite fora, madrugada fora, de coração apertadinho. Onde conheci alguns magistrados, que ficaram para sempre no meu coração. Onde vivi a minha gravidez por duas vezes, e onde deixei de fumar dois maços por dia, assim num estalar de dedos num Maio de 1985. Onde o tempo passou por mim e eu nem dei pelo tempo.
A Noémia é que me viu. Ó, olha a Clara!!! E eu levantei-me e fui cumprimentá-la. Devem ter passado uns 12 anos desde que a via ali todos os dias, bebia café ao seu lado no café da frente e falávamos muitas vezes. Ela era da conservatória. Sempre bonita mas mais magra. Muito mais magra. E envelhecida. Perguntou por todos. E voltou a fazer um Óoooooo desta vez escandalosamente surpreendente. Fomos beber café enquanto a minha colega não chegava para irmos então para alcanena. Quando a Noémia chegou junto de mim, estava eu a pensar que não tinha saudades do meu primeiro tribunal. Nem subi. Já não conheço uma grande parte da gente que ali trabalha e os que conheço estão de férias. Mas o edifício, esse fala comigo. Lembra-me coisas. O coração bate-me mais alvoraçado. Estarei eu para sempre presa ao passado ou estas coisas são assim mesmo? As paredes a lembrarem-nos. As escadas a chamarem-nos. O mastro da bandeira, a saudar-nos. A janela do gabinte do juiz, como sempre aberta a recordar-nos destinos, nas diligências fora de horas, fora de pagamentos de horas extraordinárias, dentro do espírito que existia naquele tempo. O cheiro. Os eternos cheiros a dizerem-nos que já ali vivemos parte da vida, que não podemos renegar. É o cheiro do que já passou, a querer misturar-se nas nossas memórias num compartimento que se chama saudade. A Noémia que chegou. E que foi igual à de sempre e que me fez ser a de sempre, mais do que a de sempre. Mais atenta. Mais presente. Mais livre. Menos culpada. Não fosse ali a casa da justiça.
Quando finalmente me despedi da Noémia que estava verdadeiramente contente de me ter visto deste jeito, ( que não vou dizer, porque posso parecer vaidosa ), e que me surpreendeu, porque não ser normal as mulheres serem assim umas para as outras, mas a Noémia sempre foi diferente e não deve saber o que é inveja, fiquei com pena de a ver partir ou de partir eu. Afinal não tinha saudades mas já ali ficava. Afinal aquela foi a minha casa anos a fio, aquelas foram as minhas pessoas, aquele foi o meu tempo. E hoje, há muitos anos também eu parti de outra casa. Aquela que era verdadeirmente minha. Talvez por isso estou mais sensível. Apesar da dificuldade estar na nossa cabeça o meu coração está pequenino e atrofiado.
O dia passou igualzinho ao meu coração. Às seis menos dez já estava pronta para regressar a casa.
O autocarro chegou. Desde que as férias judiciais começaram, somos menos. As minhas boleias estão de férias. O autocarro voltou a ser o meu transporte de manhã e à tarde. A Bélita já lá estava. Apressou-se a desocupar o banco para que me sentasse à sombra. Estava sem paciência para ela. Deus queira que não me diga nada, pensei, a fazer figas na minha cabeça que se fosse com os dedos, cusca como ela é dava por isso e levava a mal. Então a senhora perdeu a camioneta? Não. Vim mais tarde. Ah, eu bem disse a elas. A senhora tem o meu número, se estivesse atrasada telefonava ( como se ela atendesse; já precisei e fiquei apeada ), mas olhe que ainda disse ao motorista para esperar um pouco, veja lá que só saimos às 8,25. E ele foi devagarinho; quando deu a volta à rotunda ainda olhámos mas a senhora não vinha lá.
Valeu-me a chegada do autocarro. O motorista era uma daquelas criaturas que parecem ex-jogadores de futebol, ex-treinadores, claro com a excepção do Mourinho e do professor Queirós, evidentemente. Ex de qualquer coisa. Será que sou eu a alucinar ou este homem perde-se pelo presente como se tivesse ficado lá atrás? Será que só eu dou por isso? A figura de arrumadinho do século passado é tão escandalosa que não estranho, e até me diverte, pois que neste fim de dia, bem preciso de uma distracção. Um relógio amarelo, óculos de sol, emitação barata de uns ray ban, e nem um fiozinho do cabelo fora do lugar. - Vai para onde? Torres Novas. Viu-se nas amarelas para me tirar o bilhete, eu sei que é um embaraço para eles esta forma de adquirir o bilhete, usando o cartão, mas o contrato existe. Lá acertou com o bilhete e até esperou que eu lho entregasse já preenchido. Depois foi um ver se te avias que é uma pressa. A criatura pôs o pé no acelerador e só parava para as passageiras sairem. Surpreendente foi levantar-se a cada paragem para desejar boas férias às passageiras que vinham de Minde, e trabalham numa fábrica de confecção. A uma delas, até deu dois beijinhos, talvez a conhecesse. Cheguei mais cedo mas muito enjoada, dele, das passageiras que falavam pelos cotovelos nas férias que vão gozar, da paisagem, da música que saía do rádio ( estação local que provoca vómitos como os relatos de futebol em carro em andamento ) e confesso que até vinha enjoada de tanto enjoo junto.
Fiquei na garagem. A Pitanga fez-me ir para o centro da cidade à procura de lata de lascas de atum com camarões. Sim porque esta gata não faz a coisa por menos. Embirrou com o pescado com espinafres e mesmo com fome, não come. E dei comigo a discutir manias de gatos, com outro pobre de cristo que se queixava do mesmo que eu e não fosse a capacidade de me rir de mim própria e desataria num pranto, pois que jamais imaginaria que um dia o meu tema de conversa seria gatos, seus apetites e manias. Fui então a caminho de casa debaixo da torreira do sol e carregada que nem uma burra. É mesmo o termo. Uma burra que podia estar tão bem e anda para aqui sem poder com uma gata pelo rabo, estupidamente carregada, que as minhas hérnias um dia destes não gritam, berram e eu que não posso ficar doente não saberei resolver isto, pois quando assim foi até tinham de me vestir, que eu não era capaz de o fazer.
Todo o caminho fui a pensar na minha sina, tão cheia de pena de mim, mas tão cheia, que a minha sorte foi não me ter cruzado com alguém. Malvada terra! Como é que eu não me cruzei com ninguém capaz de ler no meu rosto o desalento, a saturação e a necessidade que tenho de ir embora?
Hoje não é bom dia. Hoje é um dia de partidas. E de chegadas. De viagens.
Mas eu não parto nem chego. Espero. Sentada. Aborrecida. Inconformada. Espero que outro dia chegue. Talvez mais apaziguado. E que não esteja assinalado como um dia que me tornou uma pessoa menos feliz.
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