Qual o transporte que prefiro, para me deslocar em Lisboa? Metro, eléctrico ou autocarro? Sim porque não vou falar em motas. Acho que não conheço ninguém em Lisboa que tenha uma mota. Ah, por acaso conheço, mas vive na zona saloia e não dá muito jeito ir a Lisboa de propósito só para me transportar. E também não quero falar de automóveis de amigos. Uns estão a trabalhar e têm o carro parado à porta ou na estação de metro de Odivelas ou do Senhor Roubado, outros estão em Luanda, outros em S. Paulo, no Dubai ou em Madrid. Porque isto de ser angolana e ser amiga para sempre de algumas pessoas que não vivem em Portugal e que se movimentam pelo mundo nos aviões, ou simplesmente estão a dar apoio a familiares numa qualquer cidade da Europa que não Lisboa, tem os seus contras e uma criatura, de repente, está de férias em Lisboa, dá-lhe qualquer coisinha que tem que ir para o hospital e lá tem de chamar o 112 porque apesar de serem muito amigos dela, não estão e não se pode estar a incomodar os vizinhos que nem sabem o nosso nome. A Marta, da loja sabe, e levava-me a contra-gosto ( pelo motivo ) até ao hospital mais próximo, ou a Mónica, a cabeleireira, ah, ou o senhor do talho, e a senhora da churrasqueira. Já os donos da papelaria, esses eram capazes de atravessar a rua para me levarem à farmácia que fica ao dobrar da esquina. Ele é antipático!!!! E apesar dos esforços da mulher, uma loira bonita, sempre com o cabelo arranjado, decotes grandes, lábios muito pintados de rosa forte e unhas de gel, apesar da simpatia dela, ele com o seu mau humor e desapego pelos clientes e vizinhos, não a deixaria tomar uma atitude mais próxima que se traduziria em vários quilómetros até ao santa maria, por exemplo. Mas ninguém aqui está para ter um piripoque.
Afinal, que meio de locomoção prefiro para me deslocar em Lisboa? Sem dúvida, que é o autocarro. Isto salvaguardando a idéia de que só assim é, porque não trabalho na capital.
O 36 é o meu fiel amigo. Deixa-me perto de casa. A frequência é a possível. Nunca vi ninguém ser roubado. Viajam muitos velhotes, que descem no Lumiar e na Quinta das Conchas. E até já conheço alguns passageiros assíduos. São alguns anos a andar no 36.
Entro no 36. À cabeça, um euro e cinquenta. Quando voltar em fim de semana já será mais. quinze por cento mais. Eles, que nem carrascos do povo deixaram a notícia para os jornalistas no-la transmitirem. Não tenho passe. Só compensa ter o do metro. Claro que compensa porque circulo ao fim de semana. Olho à volta e páro num lugar da frente. Daqueles para os deficientes. Não sou e agradeço muito ao Criador, mas sento-me. À minha frente senta-se uma velhota de bengala. Sorri-me e eu sorrio-lhe. Do outro lado os lugares estão ocupados. Tiro o pacote de sumo de goji e a barra de cereais e gengibre acabadinhas de comprar no Celeiro, por falar nisso já tenho 90 pontos mas ainda estou longe dos 20o que me darão um bónus de alguns euros que eu acho fantástico e que me anima a comprar naquela loja. Apeteceu-me perguntar à velhota se era servida. Mas para quê? Ela ia dizer que não e verdade seja dita, não entregaria a palhinha do meu sumo para que bebesse do meu sumo e mo restituísse. Se ela quisesse, dar-lhe-ia o sumo de vez, mas não me apetecia muito ficar sem a minha bebida. Já a barra poderia parti-la ao meio, mas aposto que ela não gostaria do piquinho a gengibre. Tem cara de quem não gosta de picante. Mas que olha, olha, e isso incomoda-me. Já não tem idade para augar...
No Marquês, entra um homem enorme, possante mesmo. De óculos escuros e uma daquelas coisas que parece uma bengala mas não é e não sei como se chama. Que estica e encolhe. Para cegos. Conheço-o destas andanças. Senta-se de costas para o motorista, numa vaga que se deu na avenida da Liberdade. Acabei o meu lanche. A barra fez-me sede e não tinha água. Imaginei-me num tanque cheio dela. Fresquinha. Por vezes digo às pessoas o que as surpreende, se calhar pensam que sou avariada, que há dias de calor que se me apanhasse numa tanque cheinho de coca-cola era uma mulher feliz. Nunca atento no doce da mesma e aquele açúcar a colar-se à pele, rsrsrsrsrs, apenas penso nos piquinhos que a coca-cola faz na boca, no céu da boca, o prazer de sentir o gás, hei-de pagá-las todas e depois não tenho quem me leve de automóvel e lá terei de ir de ambulância apitando num tinoni angustiante, que eu já sei o que isso é de acompanhante que fui de uma criatura a quem lhe deu um fanico, daqueles que são mais as vozes que as nozes, mas preocupante, pois o que se fala mais por aí é em AVCs e a pobre de cristo não sentia o braço, nem a cara, que até a mim convenceu que já tinha a boca à banda. E a cor? Verde, não de raiva mas de susto. E lá fui eu dentro daquela coisa a apitar, a apitar, num desesperado e desnecessário apelo à compaixão pois que a A23 pouco movimento tinha e não se justificava tal aparato.
O autocarro voltou a parar. Em frente à praça de touros do Campo Pequeno. E entraram duas pessoas. Casal. Homem e mulher. Cegos. Há muito tempo que a não via. Por ser mulher mexe mais comigo. Conheço esta realidade. Da mulher cega. Nunca a vejo que não me lembre disso. Nascer cego não sei como é. E ficar cego também não, obviamente. Mas assistir ao processo da ceguez, sei. É mau. E caricato. Sim. Caricato. Hão-de estar a dizer: A mulher é parva ou quê?
Vê-se bem que não sabe o que isso é. Pois...sei. E doi muito estar junto de alguém que amamos e que começa a perder faculdades. Neste caso, a visão. E não é mais uma graduação nos óculos, menos uma lentezita, que atrapalha e não nos é esteticamente favorável. É cumprimentar alguém que casou e dar os pêsames porque não vê bem e confunde com aquele que perdeu o pai. Se a minha amiga Milú estivesse por perto na hora, diria: Ahahahah, a D. Celeste Ganhou!!
Caricato não é? Afinal tenho razão.
O casal de cegos esperou que dois indivíduos perfeitamente normais se levantassem, o que fizeram sem pressas. Apressei-me eu a levantar-me, mas não foi preciso chamá-los porque se acomodaram nos dois lugares então desocupados.
Há perguntas que nunca farei. Há perguntas que nunca fiz à minha mãe. Porque me angustiava e porque preferi não saber, qual avestruz mergulhada na areia movediça que é a da cobardia, para aceitar. Hoje faria todas as perguntas que achasse necessárias para lhe aliviar a dor e o pesadelo que deve ser viver nas trevas. Sempre que vejo esta mulher cega que entra no campo pequeno e sai no lumiar apetece-me dizer-lhe que é uma mulher de coragem. Fico quieta no canto escuro a que me remeto, perante a luz que ela irradia. Avisou o homem que vinha com ela que era chegada a paragem e sairam. Ela tem aquilo tudo calculado e não falha. Sai sempre na mesma paragem. O outro, aquele que vai para Odivelas, mantinha-se quieto e calado. Lá atrás umas mulheres comentavam: Vejam bem, vejam vejam,( que ironia cruel ) que não se queriam levantar para dar lugar aos cegos. Sentadinhos no lugar deles, que lata, o sr. motorista devia pô-los na ordem.
Não soube se era comigo também. Não me interessava saber. Aliás já não me interessou mais nada. As lembranças umas vezes fazem bem outras não. As minhas lembranças hoje sentaram-se nos lugares do autocarro para invisuais e outras deficiências. Sentaram-se nas consciências e inconsciências de todos os passageiros do 36, que me transportou e viajaram comigo até casa.
E na minha consciência? Foram só as lembranças que se sentaram?
Afinal, que meio de locomoção prefiro para me deslocar em Lisboa? Sem dúvida, que é o autocarro. Isto salvaguardando a idéia de que só assim é, porque não trabalho na capital.
O 36 é o meu fiel amigo. Deixa-me perto de casa. A frequência é a possível. Nunca vi ninguém ser roubado. Viajam muitos velhotes, que descem no Lumiar e na Quinta das Conchas. E até já conheço alguns passageiros assíduos. São alguns anos a andar no 36.
Entro no 36. À cabeça, um euro e cinquenta. Quando voltar em fim de semana já será mais. quinze por cento mais. Eles, que nem carrascos do povo deixaram a notícia para os jornalistas no-la transmitirem. Não tenho passe. Só compensa ter o do metro. Claro que compensa porque circulo ao fim de semana. Olho à volta e páro num lugar da frente. Daqueles para os deficientes. Não sou e agradeço muito ao Criador, mas sento-me. À minha frente senta-se uma velhota de bengala. Sorri-me e eu sorrio-lhe. Do outro lado os lugares estão ocupados. Tiro o pacote de sumo de goji e a barra de cereais e gengibre acabadinhas de comprar no Celeiro, por falar nisso já tenho 90 pontos mas ainda estou longe dos 20o que me darão um bónus de alguns euros que eu acho fantástico e que me anima a comprar naquela loja. Apeteceu-me perguntar à velhota se era servida. Mas para quê? Ela ia dizer que não e verdade seja dita, não entregaria a palhinha do meu sumo para que bebesse do meu sumo e mo restituísse. Se ela quisesse, dar-lhe-ia o sumo de vez, mas não me apetecia muito ficar sem a minha bebida. Já a barra poderia parti-la ao meio, mas aposto que ela não gostaria do piquinho a gengibre. Tem cara de quem não gosta de picante. Mas que olha, olha, e isso incomoda-me. Já não tem idade para augar...
No Marquês, entra um homem enorme, possante mesmo. De óculos escuros e uma daquelas coisas que parece uma bengala mas não é e não sei como se chama. Que estica e encolhe. Para cegos. Conheço-o destas andanças. Senta-se de costas para o motorista, numa vaga que se deu na avenida da Liberdade. Acabei o meu lanche. A barra fez-me sede e não tinha água. Imaginei-me num tanque cheio dela. Fresquinha. Por vezes digo às pessoas o que as surpreende, se calhar pensam que sou avariada, que há dias de calor que se me apanhasse numa tanque cheinho de coca-cola era uma mulher feliz. Nunca atento no doce da mesma e aquele açúcar a colar-se à pele, rsrsrsrsrs, apenas penso nos piquinhos que a coca-cola faz na boca, no céu da boca, o prazer de sentir o gás, hei-de pagá-las todas e depois não tenho quem me leve de automóvel e lá terei de ir de ambulância apitando num tinoni angustiante, que eu já sei o que isso é de acompanhante que fui de uma criatura a quem lhe deu um fanico, daqueles que são mais as vozes que as nozes, mas preocupante, pois o que se fala mais por aí é em AVCs e a pobre de cristo não sentia o braço, nem a cara, que até a mim convenceu que já tinha a boca à banda. E a cor? Verde, não de raiva mas de susto. E lá fui eu dentro daquela coisa a apitar, a apitar, num desesperado e desnecessário apelo à compaixão pois que a A23 pouco movimento tinha e não se justificava tal aparato.
O autocarro voltou a parar. Em frente à praça de touros do Campo Pequeno. E entraram duas pessoas. Casal. Homem e mulher. Cegos. Há muito tempo que a não via. Por ser mulher mexe mais comigo. Conheço esta realidade. Da mulher cega. Nunca a vejo que não me lembre disso. Nascer cego não sei como é. E ficar cego também não, obviamente. Mas assistir ao processo da ceguez, sei. É mau. E caricato. Sim. Caricato. Hão-de estar a dizer: A mulher é parva ou quê?
Vê-se bem que não sabe o que isso é. Pois...sei. E doi muito estar junto de alguém que amamos e que começa a perder faculdades. Neste caso, a visão. E não é mais uma graduação nos óculos, menos uma lentezita, que atrapalha e não nos é esteticamente favorável. É cumprimentar alguém que casou e dar os pêsames porque não vê bem e confunde com aquele que perdeu o pai. Se a minha amiga Milú estivesse por perto na hora, diria: Ahahahah, a D. Celeste Ganhou!!
Caricato não é? Afinal tenho razão.
O casal de cegos esperou que dois indivíduos perfeitamente normais se levantassem, o que fizeram sem pressas. Apressei-me eu a levantar-me, mas não foi preciso chamá-los porque se acomodaram nos dois lugares então desocupados.
Há perguntas que nunca farei. Há perguntas que nunca fiz à minha mãe. Porque me angustiava e porque preferi não saber, qual avestruz mergulhada na areia movediça que é a da cobardia, para aceitar. Hoje faria todas as perguntas que achasse necessárias para lhe aliviar a dor e o pesadelo que deve ser viver nas trevas. Sempre que vejo esta mulher cega que entra no campo pequeno e sai no lumiar apetece-me dizer-lhe que é uma mulher de coragem. Fico quieta no canto escuro a que me remeto, perante a luz que ela irradia. Avisou o homem que vinha com ela que era chegada a paragem e sairam. Ela tem aquilo tudo calculado e não falha. Sai sempre na mesma paragem. O outro, aquele que vai para Odivelas, mantinha-se quieto e calado. Lá atrás umas mulheres comentavam: Vejam bem, vejam vejam,( que ironia cruel ) que não se queriam levantar para dar lugar aos cegos. Sentadinhos no lugar deles, que lata, o sr. motorista devia pô-los na ordem.
Não soube se era comigo também. Não me interessava saber. Aliás já não me interessou mais nada. As lembranças umas vezes fazem bem outras não. As minhas lembranças hoje sentaram-se nos lugares do autocarro para invisuais e outras deficiências. Sentaram-se nas consciências e inconsciências de todos os passageiros do 36, que me transportou e viajaram comigo até casa.
E na minha consciência? Foram só as lembranças que se sentaram?
2 comentários:
olá! eu gostava de andar de autocarro, mas desde que tirei a carta, não gosto tanto. O que eu gosto, é do Comboio. Quando vou ao Porto, é sempre de Comboio e alêm disso, vivo ao pé da estação de Valongo.A Maria Clara tem carta de condução? é que para uma pessoa que gosta de viajar, como a Maria Clara, a carta dá jeito, porque dá muita liberdade e prazer. beijos e um bom fim de semana. divirta-se
Olá Nuno
Obrigada.
Bom fim de semana.
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