quinta-feira, 28 de julho de 2011

o tempo partiu

Houve um tempo que me sobrava tempo. E outro, nem tinha tempo para pensar no tempo que tinha. Houve um até que o tempo era só calendário, de enfeitar a parede nas paisagens a mostrar mundo ou a equipa do Benfica, de Bela Gutman, perfiladinha, de encarnado e branco; Coluna, José Augusto, Germano, Costa Pereira, Águas, Torres, Simões. E eu desfolhava cada folha cheia de curiosidade. Era o tempo das amoras, vou dizer ao teu pai que já namoras. E das corridas de bicicleta que alugava no sr. Arlindo, nosso vizinho. A minha era encarnada e a da Fatinha, azul. Para dar sorte. Nesse tempo sobrava para a brincadeira e faltava para a matemática.
Houve um tempo que era tanto o tempo nas tardes longas e perfumadas da inocência que eu crescia ao sabor do tempo de então. Entre berridas e toca e foge. Mamã dá licença, quantos passos. Os de gigante é que eu gostava e os de caranguejos odiava. Odiava o caranguejo, o jogo e o menino que comandava o jogo. Voltar para trás nesse tempo era tempo perdido. Olha a triste viuvinha que anda na roda a chorar, anda a ver se encontra noivo para com ela casar...e vira o disco e toca o mesmo, que a pequenada gostava mesmo era de cantar e rodar na roda. Nesse tempo valia tudo. Ele era nosso amigo. Nos dava as mãos. E corriamos de mãos dadas, tipo irmão, do tempo quente, do tempo frio, do tempo de férias, do tempo de Março, do tempo de praia e do cacimbo, do tempo todo que tínhamos e que na preguiça que ele tinha para se esticar e nos esticar, nos sobrava para nos chatear.
Depois veio o tempo que nos abraçou o sono e nos acordou com o sol beijando-nos o corpo, cheio de truques desse tempo que ia chegar. E mesmo na chuva dançou na rua, e na lua cheia nos contou histórias dos sonhos que nos visitavam. Chegado o cacimbo, chegou a nostalgia de não sabermos o que nos fazia saudade. Nesse tempo ninguém falava inglês muito menos sabia o que era the end. Nem pensar, chegado esse tempo. Ninguém punha termo ao tempo interminável da existência. E quando o capeta no tempo morto de descanso, nos atormentava o sonho cor de rosa e o sono calmo e profundo, gritávamos pela mãe, pelo pai e faziamos figas, cruzes, canhoto, diabo seja surdo, cego, mudo careca e tudo, que éramos eternos, só os maus é que não.
Houve um tempo generoso que semeou cristais nos canteiros de rosas amarelas, como lágrimas suspensas, nas manhãs orvalhadas de cacimbo. E palavras bordadas a oiro e prata. E estradas de acácias floridas. E o futuro chamando...
Houve um tempo que não sabia o que era o tempo.
Onde está esse tempo?
Onde está o de agora?
Perdi-os?
Há dias em que vejo o tempo partindo. Sento-me a chorar, no porto desabrigado, lágrimas que ele, o tempo, doido por partir nem teve tempo de enxugar.
Hoje, queria ter um pouco de tempo para te sonhar, e no tempo que é teu, estar em tempo para te amar.

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