sábado, 10 de março de 2012

eu não acredito em coincidências


Carven ma griffe é um perfume. Caríssimo. Que eu usei. Apenas um frasquinho pequenino, oferecido pela minha amiga Manuela Barbosa, posteriormente, minha madrinha de casamento.
Decorria o ano de 1974. Estávamos no mês de Dezembro.
Apesar de ser um aroma perfeito, casando com a minha pele, com o meu jeito, com as cores que usava, não voltei a usá-lo. A memória de um perfume de sonho, usado em dias de pesadelo afastou-me da ideia de passar a ser o " meu " perfume. Hoje, recordei-o.
Estava no facebook. Quando vi alguém online que pertencia ao meu passado. Uma mulher que conheci pequenina. E a quem pedi amizade há uns tempos na presunção de que pudesse ser a M.T. Na sua fotografia descobri traços forte da minha professora da 4ª classe de quem fui vizinha desde pequena. Fiquei contente quando aceitou mas não falei com ela. Foi num dia complicado e precisava de uma certa paz para me dar a conhecer. Hoje acabei com essa coisa do chove e não molha porque não sou nada assim e decidi finalmente falar-lhe no chat.
A sua família foi importante no meu crescimento. As suas tias, uma referência de peso que me marcou a existência favoravelmente. Eram três irmãs. Maravilhosas. A mais nova, menos formal, mais moderna, elegante, bonita. Giríssima na forma de vestir, estar e falar. De uma educação exemplar. As três. E as pessoas que gravitavam à sua volta, como maridos, filhos e outros. Quando as conheci tinha cinco anos. Mudara-me para junto do colégio e nesse ano fui fazer a primeira cabunga como se chamava à pré-primária.  Mudara-me no dia dos meus anos. 12 de Julho. E iniciara o ano escolar a 10 de Setembro, chorando que nem uma condenada, pela mão da Fatinha Rocha, minha vizinha, que já frequentava a primeira classe à séria. Pouca idade, muito mimo e medo da professora, menina Piedade, uma mulata magra e alta, sisuda e com pêlo na venta, que mais tarde se revelou uma mulher extraordinária, também ela um exemplo a seguir.
 A mãe dessas 3 mulheres, irmãs,  que me influenciaram comportamentos, era uma velha senhora com uma classe que nunca mais encontrei em ninguém. Fumava loucamente e bebia ao lanche uma chávena de café de cafeteira a que acrescentava leite moça ( condensado ) em bruto. Chamava-me à sala onde eu estava a dar aulas para lhe fazer companhia.
- Clarinha! Clarinha! - Na sua voz grossa e segura - Vamos beber o nosso café? 
E eu ia num ritual gostoso. E apesar da minha pouca idade, 19 anos, ouvia-a com muita atenção,  devoção mesmo, contar estórias do mato, de um interior de uma Angola desconhecida para mim, mas tão sedutora e misteriosa quanto fascinante e bela,  do início do século 20. Batalhas. Êxodos. Provações. Poderes e conquistas. A história de Angola do século XIX e início do século XX contada por quem vivera parte da história e ouvira contar aos seus pais o que não vivera. Por quem andara no interior do país com o seu marido, um transmontano bom e íntegro que era o exemplo das suas filhas e dela, D. Laura e que morrera por causa de uma injecção, precocemente, quando eu tinha 8 anos e andava na terceira classe. Ela, a viúva, sofria de hipertensão e fora a primeira pessoa que conheci e com quem convivi que passava mal por via disso, mas sempre rija que nem um pêro. De vez em quando almoçava com ela. Quando o cheiro a feijão de óleo de palma invadia a sala de aula do primeiro andar onde eu ensinava os meus alunos, era certo que nesse dia eu não ia para o 126 da avenida do brasil e ficava ali mesmo fazendo-lhe companhia à mesa.  Mas em dia de caldo de peixe também. E de funge de peixe ou moamba, idem. Ouvia-a  - Clarinha! Clarinha... 
Cliquei no nome da filha da Vera. A caçula da D. Laura. A mulher que me fazia querer crescer e imitiar. Tal e qual. A mulher elegante, finíssima, bonita, educada e feliz que se mostrava ao mundo. A mulher que vi finar-se muito mais precocemente que o pai, o transmontano íntegro de quem sempre ouvi falar com orgulho e amor. A mulher que eu admirava e a quem tinha um profundo respeito. Aquela a quem eu velei na noite de 19 de Dezembro do ano de 74, vestida de azul escuro, na única lacoste que tive na minha vida, calças azuis escuras e cheirando a Carven ma griffe. Hoje, recordei o aroma forte daquela noite, na mortuária da igreja do Carmo.
Saudei  a Mité. E perguntei-lhe se sabia quem eu era.
- Clarinha! Chamando-me assim só podes ser tu...
Clarinha...tal como a avó Laura, a tia Zita, a tia Dina, a mãe Vera, me chamavam.
Hoje toquei de leve num passado longínquo e mergulhei de cabeça nos sentimentos que me fazem ser quem sou e reconhecer-me num nome chamado com carinho e apreço ao fim de três décadas. 
Hoje dei a mão ao passado do meu crescimento junto de gente muito próxima, que me educou e ensinou a tabuada, a leitura, os problemas e as canções, num lazer gostoso de côro escolar. Num, " caranguejo não é peixe, caranguejo peixié, caranguejo só é peixe quando entra na maré "! 
Num passado de família, apadrinhando a minha caçula na igreja de S. Paulo. Num passado de amizade e constante convívio com os filhos destas mulheres, com estas mulheres e com as suas famílias. Num tempo bom que ficou impregnado na minha pele, nas minhas vísceras como  Carven ma griffe e aquela noite triste do velório da Vera, mãe da Mité que hoje ao fim de 37 anos tocou a minha alma quando me chamou - Clarinha...
A vida tem encontros e desencontros. No que depende de mim, tento sempre que os desencontros se possam transformar em reencontros felizes. Entre viagens e constantes partidas e chegadas, há dias em que retornarem a nós pode ser mão do destino, do universo ou apenas uma coincidência.
Será? Eu não acredito em coincidências.
Um dia destes, vou à procura do Carven ma griffe numa qualquer prateleira duma qualquer perfumaria. Juro que vou.
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