sábado, 24 de setembro de 2011

logo mais à noite estarei feliz

Entreguei o bilhete ao motorista, que cheirava a tabaco que tresandava e exibia os óculos de sol na testa, como todos os motoristas o fazem. Pressenti uma viagem longa. Tão longa que só de nela pensar me dava voltas o estômago. Ou seria o fígado? Viajar a partir de Alcanena não tem nada de bom. Nem auto-estrada, nem paisagem, nem interesse. E sempre é bom prevenir com uns sacos plásticos por causa das curvas. À 6ª feira o trânsito é nervoso. E o verão ainda se faz presente neste autocarro, mas apenas para incomodar com o seu calor, misturado com os cheiros exalados e que provocam uma dor de cabeça no prolongamento da existente.
Entro no Cartaxo. Já cá não passava há uns tempos. Lembrei-me da Eugénia, a mulher que me levou uns trocados dados sem pensar muito no assunto, apenas porque prefiro ser enganada a ser injusta. Disse que trabalhava numa média superfície, não me lembro qual. Jamais iria regatear as moedas que lhe dei de mão aberta e beijada. Passando pela rua principal, pude ver a churrasqueira dos retornados, que afinal é Ribatejana e não Ribatejano. A memória é o que é e quando não é estimulada troca letras quando não troca identidades e sentimentos...
Lá está também a pastelaria toda x.p.t.ó, com o belo pão de todas as sementes e mais alguma, daquele que faz bem ao intestino e ao coração, dizem, e se o povo diz repetindo quem sabe, o povo tem razão, aliás, o povo tem sempre razão, mesmo quando gosta mais de panrico, se formos a ver, lá terá as suas razões, sempre há a falta de dentes, ou vento na algibeira.
Gosto do Cartaxo. Não tenho motivos para não gostar. E está em obras. Um parque subterrâneo junto aos bombeiros e ao tribunal e a estrada alargada, vão tornar o espaço claramente mais transitável, útil e arrumado. A cidade cresceu na minha ausência e não evito uma saudadezita dos almoços de sábado, quando a caminho de Lisboa, ou não, parava para a habitual moambada. As saudades tomam-nos conta da vida se deixarmos que entrem, por isso xó, xó melga, desinfecta a zona que o meu cérebro tem de estar limpo de memórias que me causem algum desconforto e me perturbem a existência, que tem andado bastante nervosa, ansiosa e expectante.
A auto-estrada surge depois do Carregado, o que é um alívio. Posso descansar as idéias sem enjoar e ouvir calmamente música no MP4. Tenho um problema. Dormirei eu de boca aberta? E farei algum som perturbador que incomode quem vai perto de mim? Afinal, nem perco o norte; passo pelas brasas do lânguido sono de vigília que dá um entorpecimento gostoso e nos tira daquele espaço desconfortável, comum a gente dos diversos cheiros e linguajares.
Acordo quando passamos por cima do túnel do Grilo. A memória apanha-me de novo e tenta trair-me. Tenho pouca capacidade para suportar mais traições. Hoje estou pior que nunca, frágil. O motivo que me leva a Lisboa é o melhor. Mas não o isolei. E os pensamentos surgem, ferozes.
Lisboa está infernal. A estação em Sete Rios, em fúria. A impaciência reina aqui. A pressa e a ansiedade do fim de semana, também. Bem sei que não costumo chegar a esta hora. São 5 e pouco. Ainda se lancha no quiosque, junto ao metro. Pedi uma empada de galinha ao simpático indiano que ali está sempre, com um sorriso estampado no rosto moreno, e fui a comê-la pelo caminho fora até ao metro. Tive sorte. Chegou quando descia as escadas a correr. Consegui entrar, empurrando uns quantos que já lá estavam dentro. Eu e os que entraram comigo. Fiquei agarrada pela palma da mão esquerda ao tecto do metro. Nem uma nesguinha de espaço mais. No Marquês mudei de linha. Mas não houve melhoras. A linha amarela estava em crise, ouvi dizer. Voltei a ficar como sardinha enlatada, comprimida e achatada. O varão permitiu que um matulão fosse com os dedos praticamente em cima dos meus. A minha cintura foi invadida por um cotovelo não sei de quem e a minha mama direita repousou sem apelo nem agravo no ombro duma criatura minorca, homem. O meu nariz cheirou a catinga de uma axila e a mão direita, disfarçadamente, serviu de máscara. À minha frente, tinha uma mulher com ar de tia de Odivelas, olhando tudo por cima da burra e a mim também. No Campo Grande o matulão saiu do varão e também um rapaz engravatado com ar de executivo que de vez em quando olhava p'ra mim com aquele ar de encolher ombros e dizer: Deixa lá minha, isto passa já e não doi muito. Meteste-te em apertos? E eu? Estamos no mesmo bote, kota, só nos resta navegar.
No Lumiar saiu mais uma mão cheia deles. O tão esperado momento de ficar sozinha no varão, chegara. Juro que tive maus pensamentos. Ri-me com a ousadia. Acho que nem sendo uma top-model teria o atrevimento de fazer a dança do varão. Isso levou-me àquela criatura, striper, que joga na casa dos segredos e tem umas mamocas do tamanho de balões cheios de água. Afinal, nem é preciso ser top-model. Se calhar basta saber dançar, conforme a música...
A tia de Odivelas continua a olhar-me e faz mira para os meus pés. E como isto não tem estado a correr nada bem e porque se a gente está cansada nervosa e insegura pensa que até temos culpa da nossa existência, olhei os pés não fosse ter algum problema. Sandálias pretas, unhas pintadas de laranja e mais nada. Que criaturinha embirrante e estranha esta! Valeu ter saído na Quinta das Conchas, pois que os meus dedos suplicavam por gestos um tanto obscenos e afinal, eu sou uma senhora e não posso desmanchar o boneco. Chegada ao Senhor Roubado, uma criatura falava com o cartão e com as portas que não abriam, à sua passagem. " mas este cartão está parvo ou quê? xxxxxxxtsssssssss, abre, porra. E a " porra " apitava e não abria. Mudou de cancela e conseguiu. E eu também.
Na rua, olhei o largo, as estradas que vão para Odivelas. O sol radioso, ilumina tudo. Até a mim, que em férias não valorizo este chegar a casa. Em férias, não tenho pressa de chegar, tenho muitos dias para viver. Espero que o semáforo mude. O trânsito está de doidos. Até no sentido de Lisboa. Uma mulher pára ao meu lado. Atende o telemóvel: Diz, filhota. Ahn...ahn... Ah pois. Não me admirava nada que a porra da máquina já trouxesse uma merda solta. Tens de ir reclamar. O pior é que o filho da puta do fim de semana só vai
atrapalhar.
E eu penso: o f.d.p. do fim de semana vai atrapalhar? Que p... de vida esta! Não há quem esteja contente! A minha noite de 6ª feira está ganha e não há nem merda nem porra nenhuma que mude isso.
Estou na minha rua. A Marta vê-me ( a Marta é uma das senhoras que gere o supermercado ) e sorridente diz-me: D. Clara, boa tarde. Está boa? - Há 6 anos que lhe digo que tire o dona e em vez disso de vez em quando chama-me d. olívia. Depois encabulada, prossegue: porque raio lhe chamo Olívia? Não tem cara de olívia. Respondo ao cumprimento e vem-me ao pensamento uma resposta que me causa náuseas - Boa estava eu há 30 anos. Mas a Marta não merece. Nem eu.
Subo as escadas. Dou à chave. Entro. E recebo um abraço do tamanho do Mundo. E dou esse abraço como se não houvesse amanhã. Não sou eu que digo que aprendi a viver um dia de cada vez, num lugar comum, tão óbvio que até chateia, mas que nem por isso é comum assim?
Entrei finalmente no fim de semana. Agora, é relaxar e esperar serenamente a hora de me encaminhar para o Centro Cultural da Malaposta, aqui pertinho de casa que até vou a pé e empoleirada nuns saltos gigantes.
O mundo deixa de ter importância. Há motivos fortes que me fazem manter neste palco que é a vida. Há um motivo superior que me tem sentada, de olhos postos no palco do teatro. E de coração inundado duma suprema alegria e um orgulho singular.

2 comentários:

maria disse...

Entendi-te amiga.
Estás que nem podes e fazes bem. São momentos únicos esses de mãe babosa. Parabéns.
Amei o texto. Quando é que resolves escrever um livro?
b.f.s.

Anónimo disse...

Belíssimo texto, Maria Clara.
Uma mão cheia de cores, de movimento, de vida pulsando, de arte e beleza, de escrita perfeita.
Adorei. Beijos.
A.L.