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Trago uma estória a este domingo. Não é uma estória qualquer.
Aconteceu há 39 anos e era domingo. 12 de Agosto, também. Não acredito em
coincidências. Acredito em memórias de elefante. Estórias fantásticas. Sonhos,
amores e desamores, lembranças p’ra sempre, sentimentos que nunca mais os arrancamos do
peito. Ficam-nos na pele. Nas vísceras. Dominam-nos o coração. Marcam-nos p’ra
sempre. Não há nada a fazer e se houvesse, queríamos repetir. Há estórias que
as guardamos como diamantes. Há pessoas e datas p’ra todo o sempre e isso faz
de nós pessoas especiais.
Era uma vez…
Domingo de cacimbo. Enfadonho. Não se passa nada de interessante. Há domingos assim e eu não gosto. Se o primo
Fernando não vier almoçar connosco e não formos dar uma volta por Luanda fora, para
eu arejar, fumar um cigarro, dois ou três, se a família não quiser fazer um
passeio que pode ser, a Caxito, à barragem das Mabubas, a Viana, ou à Barra do Kuanza com paragem na
volta no morro de Santa Cruz, estou feita. Não saio de casa. O tio Augusto pode
ir à matiné e passar cá para me levar. É uma hipótese. Posso ainda passar a
tarde na D. Arminda, minha vizinha, a aprender a falar crioulo com os caboverdianos
amigos, que aos domingos os visitam p’ra matar saudades da terra longe e tocar viola,
cavaquinho e cantarem mornas e coladeiras.
A mãe e o pai dormem a sesta, o pai adormece a ouvir o relato, o mano Zé faz
fisgas, carros de rolamentos, anda entretido com os peixinhos que vai apanhar
na ponte que vai para a ilha, do lado da Chicala (sem nós sabermos ),
brinca nos quintais dos vizinhos, com o
Jorge, filho do Henrique e sobrinho do Necas, os caçadores de pacaças e veados que
saem sábado depois do almoço nos jipes, e voltam com os animais mortos e
pendurados como troféus, no domingo ( o pai às vezes fica com carne, se for de
veado, porque diz que a pacaça é rija ) e a caçula dorme com os pais ou vai
brincar com a Filú, Zé Augusto e Paulinha, para o quintal da d. Arminda. Mas há também as minhas amigas Julieta e Faty
que vivem na Vila Alice, onde posso passar umas horas, que correm parece gazela
assutada.
Hoje é dia de torneio com equipas estrangeiras. A equipa brasileira que está em
Angola jogará em Nova Lisboa. Já jogaram em Luanda. O Benfica também. Um
acontecimento que entusiasma os angolanos. O torneio divide-se por Luanda e
Nova Lisboa. O relato tomou conta das rádios. Os carros, as casas, toda a gente
está sintonizada no acontecimento do ano.
Visto umas calças vermelhas, boca de sino. Camisola de malha, manga curta, azul
escura e branca, oferta da D. Arminda nos meus anos que hoje faz um mês que
completei dezoito. Para a maior idade faltam três mas o sô Santos se quiser e
eu precisar já me pode emancipar. Duvido. Quer-me ter na mão. Na amarra. Sob a
patinha. Filha minha emancipada, p’ra quê? Tem tempo. Nem pensar, isso é para
aquelas que querem andar à rédea solta. Isso era o que mais faltava, enquanto
eu mandar só aos 21…
Calço umas socas que comprei numa sapataria em S. Paulo. Na moda e na banga. Um
salto bem alto e grosso, preto. À frente, fechadas e às barras. Azul, branco e
vermelho. Fico uma torre. Tipo girafa. Já me têm chamado mas eu não ligo. Metem-se
muito comigo, na rua. Um até já bateu a sua mota na traseira dum carro só para
dizer besteiras e ficar a olhar. Uma dia destes a passar em frente à Mónaco um
grupo de rapazes meteu-se comigo que eu até corei, mas pensam que baixei a
cara? Era o que faltava. Não me conhecem. Empertiguei-me, levantei o nariz e
segui o caminho. Ó borracho, queres por cima ou por baixo? E eu que sou rápida
no gatilho, perante tamanha ordinarice, olhei a mesa cheia de rosqueiros e
contei até 10, depois vermelha que nem um jindungo maduro fui dizendo asneiras
mentalmente até estar vingada. Besugos da tuge! Eu até conheço a resposta a
essa ordinarice mas ali não podia responder sob pena de sair mais humilhada
ainda.
Bem, pronta que estou, penteio o cabelo que bate nas costas. Risco ao meio e
testa à mostra, prendo a franja dos lados com uns ganchos brancos e outros azuis.
Pinto os lábios de encarnado, risco nos olhos e rímel. Umas gotas de perfume
santa clara por trás das orelhas, na curva dos cotovelos e no pescoço e já
está. Despeço-me da mãe falando baixo: vou para casa da Julieta. Não venhas
tarde, Maria Clara, não venhas tarde. Tá beeeeeem, digo enfadada. Agarro no
maço de Baía, meto-o numa bolsa para o efeito e aí vou eu.
As minhas amigas estão ao portão. Os sobrinhos, que são crianças e adolescentes
brincam por ali. Alguém tem uma máquina fotográfica. Tiramos fotografias,
fazendo caras, a rir, a fazer cornos com as mãos atrás das cabeças de umas e de
outras, enfim, para mais tarde recordar. Acendo um cigarro e fumo-o com o maior
prazer. Se o sô Santos sonhasse, fazia-me engoli-lo. Eu arrisco muito. Vergonha
é a do Nero ( o cão do Colégio ), medo, algum. No intervalo, vou fumando, pois
claro. Até sei fazer bolas umas a seguir à outras parecem nuvens anãs.
Um Vauxhall viva branco com três rapazes dentro passa devagarinho e riem e
falam, o habituêe. A tarde começa concorrida aqui na rua Alberto Correia. Os
miúdos inicialmente divertem-se com o “ ataque “ desses três madiês, todos
pipis e achando-se verdadeiros Trinitás, depois, a insistência é tanta. Tantas são
as vezes que dão a volta ao redondel, que desligam. O contrário se passa
connosco que estamos divertidíssimas. Eles são uns borrachos e quem não gosta
deste engate barato mas divertido?
A páginas tantas, quando a noite quer vencer o sol cacimbado deste domingo de
férias, e parece que os moços desistiram de investir, pois já passou muito
tempo que até julgávamos que se tinham evaporado, avisto o Vauxhall ao longe,
perto da Churrasqueira e da loja do Adérito. O carro passa devagarinho, e o
condutor do carro, no alto dos seus olhos esverdeados, cabelo aloirado e pele
branca, sorriso cafajeste e voz bonita com sotaque de branco angolano, abranda
e diz: Está a fumar demais. Sabe que o cigarro faz mal? E eu que não gosto que
me façam observações parvas, disparo sem sequer pensar, numa má criação
costumeira: É a mim que faz…
Começa aqui a estória. A tal estória que é a estória de sempre. Aquela que foi
a grande estória, sim porque uma estória só é grande se não tiver um final
feliz, porque tem contornos que nos marcam para sempre. E vocês agora perguntam
pelo fim. O fim? Não tem.
Uma estória que acontece quando o país está para se tornar independente pode dar
um filme trágico/romântico. Pois…
Já não fumo. Há 27 anos.
Nunca mais o dono dos olhos esverdeados, voz sotaqueada, sorriso cafajeste me
dirá: sabe que o cigarro faz mal?
Há dois meses atrás, num almoço do meu bairro fui eu que disse ao dono dos
olhos esverdeados, voz sotaqueada, sorriso cafajeste: Sabes que o cigarro faz
mal?
Conclusão a retirar. Não comecem nenhuma estória de amor de cigarro na mão.
Podem queimar-se.
Hoje é um dia especial para mim. Diz que a amizade é o amor que nunca morre.
Pois é. A minha estória é uma grande estória também por isso. Que o digam a
família e os amigos de longa e recente
data. A existência do dia 12 de Agosto, presente na minha vida, faz de mim uma
escolhida. E ser-se escolhido faz de nós singulares. Se voltasse a nascer,
queria de novo ser escolhida para viver esta ou outra estória de amor para
sempre, mesmo que na ausência de anos e anos. Mas sempre presente. Feita de
encontros e desencontros no espaço e no tempo. Nos sentimentos.
Hoje apetece-me dar-te um abraço de um tamanho maior do que o universo, que não caiba
em nenhuma das eternidades que existirem. Obrigada G. F.