De Luanda sei vinte anos. Sei as manhãs, sei as tardes, sei o som dos grilos na noite e dos cães ladrando, sei o gosto das mangas maduras em que me lambozava num desgoverno que afectava a minha barriga, sei das estrelas e dos contos das sereias na cacimba do bairro Indígena, sei dos pescadores da Ilha, fumando cachimbo, envoltos em panos, sei da Joana Maluca, sei da Velha Mariquinhas, antiga escrava em Portugal, feiticeira com mais de 100 anos, sei das meninas do Bairro Operário e da Cagalhoça, sei do carro do fumo ( tifa )e dos garotos correndo numa alegria histérica e sempre renovada, sei da sirene das ambulâncias passando para o Hospital de S.Paulo, sei do Padre Luís que me confessava sempre dos mesmos pecados e me contou a história do Pinóquio tinha eu 7 anos, sei do jogo do Garrafão, da Minha Mãe dá Licença, Brincando na serra enquanto o lobo não vem, o que é que o Lobo está a fazer?... ou ,Minha mãe dá-me fogo.De Luanda sei a avenida ser alcatroada, brincar nas manilhas e perder as sandálias, alugar bicicletas e chumbar no liceu, sei do Liceu Feminino, da D.Filipa, da professora Aida, de História, ou da Irene Marques, dos jogos de rinque, na cerca, ou as aulas de Canto Coral, dos russos comidos no intervalo e das missas na Igreja de Jesus, com os orfeões das escolas de que fazia parte. Sei da Mocidade Portuguesa e do Hino...Lá vamos cantando e rindo...De Luanda sei a praia das Palmeirinhas, D.Amélia, ou na Ilha, a Floresta. Sei do Colégio, da D.Zita e D.Dina, professoras. Sei das idas ao porto esperar pessoas idas de Portugal. Sei das procissões com a Nossa Senhora de Fátima. Sei do Chá das Seis e do Cazumbi. Dos jogos de futebol nos Coqueiros, do hoquei em patins, do basquetebol e do campeão Vila Coltilde ( ali perto de mim ). Sei da febre amarela e da cólera e do pânico para apanhar a vacina. Sei dos Santos tapados de roxo na semana da Páscoa, das idas ao cemitério no dia 1 e 2 de Novembro e da rádio passando música sacra. Sei dos parodiantes de Lisboa à hora de almoço e das radionovelas - O Inimigo. Sei do filme do Tony de Matos que passou no Império, o Destino marca a hora. Da Marisol, do Joselito e do Cantinflas. Sei das salsichas quando apareceram em lata, e da margarina Vaqueiro também. Sei de Energetic para pôr no leite e de cêcemel. Sei de matete que se dava às crianças, de doce de mamão, dos figos selvagens, das gajajas ácidas e das pitangas, do gengibre e da cola, quando as quitandeiras estendiam as quindas e vendiam - eh peixié peixié...Dos homens que vendiam pelas portas, queijos frescos numas caixas metalizadas, dos pirolitos às cores metidos nos suportes de madeira com furinhos e andares. Do Sr. Torrão, dizendo- é caramelo torrão de Alicante, mete na boca, derrete num instante... Dos papagaios nos céus, dos primeiros helicópteros. Da colunas militares e dos tropas vindo do mato. Dos camiões de contratados para trabalharem no mato. Da carroça dos cães e do meu ódio pelos homens cada vez que levavam um cão meu na carroça. Da roupa branca fervendo na celha e corando nos coradores...da Lucrécia, minha lavadeira, que dizia -menina Clarita, menina bonita...do tio Augusto cantando -Fica comigo esta noite e não te arrependerás, lá fora o frio é um açoite, calor aqui tu terás...Dos sipaios ao domingo passando junto de mim quando eu ia chamar o meu avô para matabichar em nossa casa. Dos engraxadores, criaturinhas pequeninas com a caixa às costas. Das madrugadas ouvindo o assobio dos varredores, na rua. Dos bandos de pássaros no céu ao sábado à tarde e dos miúdos gritando e dizendo que era um casamento. Dos carros de rolamentos. Do Carnaval. Do Roberto Carlos, das fotonovelas e dos livros da Corim Tellado. Dos brindes que saiam no detergente "Extra " e nas tampas da Coca-cola. Os cromos do futebol. Do Alex cantando pelos cinemas em espetáculos de encantar as jovens. Dos cigarros "Baía " ,dos negritos que pedia à Lucrécia para ir comprar, avulsos. Dos bolos da Royal e das empadas, com ovo e azeitonas. Dos pregos no prato. Dos S.Marcos, das cassatas. Dos ovos estelados em azeite e das caldeiradas de cabrito. Dos rebuçados de mentol que o pai punha no bolso quando saíamos para passear. Dos baleizeiros que enganávamos com moedas portuguesas, dos concursos de montras na baixa. Do Santos Quipexe, chefe de posto que passeava na sua mota com um lugar de lado, no Simão Toco, no conjunto os Jovens, ou os Cunhas. Do Minguito cantando -Ai este tango este tango..na Voz de Angola e no programa que dava ao domingo- Momento da Mulher. Da Lucília Pita Grós Dias, locutora de fama que fazia o Rádio Magazine da Mulher e logo a seguir o Mais Alto e mais Além, para os tropas. Fomentava a rivalidade entre benfiquistas e sportinguistas e quando o sporting ganhava punha - Vivó Sporting...De Luanda sei as barrocas do Miramar e o Eixo Viário, as Amarelas,sei a Cuca e a Samba. A estrada de Catete, a Vila Alice,Vila Clotilde. A Liga Africana. Sei os baleizões de copinhos às cores e colherzinhas, tudo embrulhado em papel. Sei os bolos de banana e de ananás. Sei as santolas e os caranguejos de Moçamedes.As maçarocas, o algodão da Funda para Catete, plantado junto à estrada. Sei as caçadas de pacaças e veados. Sei a miss Portugal - Riquita. E os seus calções cor de vinho, à chegada a Luanda vitoriosa. Sei Ouro negro e o seu Curicutela... De Luanda sei os desfiles militares em cada 10 de Junho, o dia da Raça, na Marginal. Sei as injecções contra o tétano depois de me cortar em cacos de garrafa, por andar descalça no quintal ou na rua a brincar.Sei braço partido por cair de um muro abaixo.Sei gesso e imobilidade.De Luanda sei as saias plissadas. A goma nos saiotes. As permanentes na cabeleireira com grotescos ferros, verdadeiras tenazes, no pobre cabelo, e os chapéus com tule para irmos aos casamentos. Sei as boleias para a praia à revelia do pai. Os primeiros namorados. O primeiro beijo na ponta da Ilha. Na praia do Sol. Junto aos Maristas, na estrada de Catete. Os sonhos. A Igreja da Nazaré para abençoar um futuro casamento. Achar que o vestido de noiva podia ser vermelho e longo. Ir às boutiques na Baixa. Os primeiros pubs. Os cafés e pastelarias. Os bolos da Detinha. De Luanda sei " O Jumbo ", o Autódromo. A Filda. As fogueiras e os balões que se elevavam no ar e na noite, nos Santos Populares. De Luanda sei as mornas de Cabo Verde, o criolo e a palavra lindíssima que quer dizer meu amor- Nha Cretcheu- De Luanda sei a Alegria. A Esperança. Sei a Amizade, o Respeito e a Humildade. A Compaixão. Sei o Amor... De Luanda sei o sofrimento, a morte, o racismo, o ódio. De Luanda sei a partida, a perda...De Luanda sei tudo o que fui e o que sou. Pareço saber de Angola. Apenas sei de Luanda, mas uma terra é feita de coisas como estas e todas as terras são parecidas se as suas gentes forem autênticas.O pouco que sei é da participação. É da leitura. É da intuição. É porque quis saber. Porque quis viver.
t.novas 2009
clara santos
sábado, 8 de maio de 2010
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5 comentários:
adorei este texto. obrigado.
brigada eu, meu filho por teres querido saber sempre de Luanda e dos meus vinte anos. Por teres ficado quase tão feliz quanto eu, quando regressei a Luanda. Nunca mais me esqueço que me disseste, quando cheguei à minha terra " Mãe não estou a acreditar, estás mesmo em Luanda, parece um sonho...".
Quando me lamentava por nunca mais voltar, dizias-me pequenino " Em 2010 eu levo-te a Angola " e durante anos eu " agarrei-me " a isso para poder acreditar que voltava. Felismente que fui antes e por duas vezes já. Agora, sou eu que digo, que um dia tu vais comigo conhecer a minha cidade, o meu país e sei que vais ficar apaixonado por aquela terra mágica e pelo seu povo.Um dia, meu amor, nós vamos os dois, porque não conheço ninguém que mereça conhecer a minha terra, como tu.Um abraço do tamanho do olhar de Deus.
Porque já tinha tido o privilégio de ler este texto, lindo, acho uma maravilha que o tenha reescrito aqui. É lindo, maravilhoso e vai ser certamente do agrado de quantos acompanham o blog.
Um beijinho e um bom domingo
Obrigada querida. Muito obrigada pela assiduidade e pelo carinho. Quando voltar a Luanda juro que vou fotografar a Brito Godins e tudo o que queres recordar da nossa querida Luanda. Beijinhos e bom domingo.
Clara, vem cá te espero! beijos
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