segunda-feira, 29 de setembro de 2014

amanhecendo

Amanheci abrindo os olhos assim como quem levanta as persianas daquela janela virada para os amanheceres de todos os outonos brigões. Ora com pedaços de chuva, granizo de empedrado transparente e violento, ora com vendavais vingativos, ora com sóis agressivamente quentes na urgência de mostrarem serviço.
Não sei dessas quezílias temporais nem quero adiantar-me. Os meus olhos abertos na mansidão dum domingo que promete, fixa os cantos do quarto, visíveis daqui. O meu horizonte está nessa limitação branca, nas barreiras. Sem fita métrica nem escadote não arrisco medir o ponto que vai d' um princípio ( aquele que olhei primeiro ) a um fim. Palmo a palmo percorro a parede, fazendo contas de cabeça. Um quarto é um quarto. Nos fundos da casa, num apartamento, numa moradia, num hotel ou num barco.
Um quarto é a nossa intimidade. Alma nua. Instinto, repouso e sobrevivência. Um quarto não é apenas o lugar aonde a gente dorme. É o nosso porto. Luta de (des)poderes. Alcova de anseios e clímax de sucessos. Libertinagem. Leitura. Dos nossos eus. Um quarto é um espelho. Imagens, quadros, filmes, tudo sem filtros. 
Um quarto é o hoje puxando o cordel da memória, dando guita às lembranças, chamando espíritos de luz, espantalhando fantasmas como quem entreabre portadas viradas para o passado, que de tanto ter passado parece foi noutra encarnação, que me deixam espreitar. Pelo buraco da fechadura. 
Embrulhada que estou nos lençóis brancos ( cada vez mais gosto de lençóis brancos como os do enxoval da minha mãe ), sentindo-lhes o cheiro a lavado ( parece de sabão azul e branco ) viro-me para o lado do coração. E as minhas forças da natureza maiores em dia de santo descanso de todas as angústias e medos parece me arrancam do fundo de mim e me gritam vitórias. E me incentivam a continuar neste trilho. E me dizem que não estou só na curva do caminho, naquele canto do quarto. Na limitação dos limites. Neste outono urgente em se outonar. 
Amanheci assim, passeando-me preguiçosamente pelas margens de amores tão grandes como os rios maiores do mundo, que estão certos de ir abraçar o mar e levam muitos beijos para o adoçar. E enquanto vão e não vão, beijam também os barqueiros no seu navegar.

quinta-feira, 25 de setembro de 2014

condição

Para lá de que céus
De que nuvens
De que asas, te transporto no meu peito?!...
Para lá de quantas vozes
Quantos sonhos
Quantas preces, te guardo e protejo
De todos os males profundos?!...
Para lá de muitos mundos
Do meu amor
Da saudade
Minha dor...
Vais no rumo certo
Em busca da tua verdade
Estrada que se abre ao caminho
Estrela que te há-de guiar
Presente abrindo futuros
E eu aqui a sorrir-te
Com vontade de chorar...
Para lá do universo
De mim e de todas as urgências
Das palavras em prosa e verso
o que eu quero é ver-te feliz
Meu eterno petiz
Nos bastidores do silêncio
No desejo de voar
No abraço do meu colo
Ou num palco a dançar
m.c.s.

a propósito do Dartagnan


O homem que não conhece o Dartagnan mas conhece a equipa do Benfica cada vez melhor, nomeadamente o Talisca.
Hoje começou de fato e gravata. Acabou em mangas de camisa. Arregaçadas.
Começou no rectângulo que lhe é destinado e acabou a prevaricar vezes sem conta. Como sempre, aliás. 
JJ no seu melhor...
m.c.s.

ah pois é!

Ah pois é!
Diz que " há vidas mais baratas, mas..." diz também que " não prestam..." 
Não fui eu que disse, mas digo que o dinheiro pode não dar felicidade mas que ajuda, isso ajuda e de que maneira. Como não?
Ver chover mais duma hora sentada numa poltrona deste lugar, sendo servida pela posta do meio, é maravilhoso. Bem diferente da tragédia que é estar esperando a chuva passar numa paragem de autocarro depois de ter ficado um pinto. Com a roupa cheia de lama, dos banhos das poças provocados por condutores estúpidos. A roupa molhada, colada ao corpo, partidas as varetas do chapéu de chuva comprado nos chineses, os sapatos estragados, a mala molhada até ao forro, o rimel escorrendo cara abaixo misturando-se com a água e as lágrimas que escorrem até à alma ferida e desconsolada por não ter dinheiro para o taxi. Sujeita a uma pneumonia. 
Sei que nem oito nem oitenta, mas...todos merecemos uma poltrona forrada a veludo e a posta do meio, não?
Ah porque torna e porque deixa...eu cá, mereço.
A vida é rica e bela. A gente é que está ganhando miseravelmente! P' ra eles. Alguns dos que frequentam este lugar e nunca ficam na paragem do autocarro num dia de chuva.

m.c.s.

entre lembranças e paladares


O Chico Careca, viveu nos nossos anexos, anos a fio. Tinha um bigodinho, entradas profundas na cabeça, cabelo ralo, seco de músculos e gordura, poucos sorrisos e piores falas. Vestia sempre camisa branca e calças escuras. Tocava acordeão. 
Não comia connosco à mesa nem era a Lucrécia que lavava a sua parca roupa. Lavava-a ele. E cozinhava num fogão a petróleo na varanda, junto ao quarto.
Durante o dia esquecia-me dele. Acho que dormia toda a manhã. Não admirava. Era guarda-noturno. Ao fim da tarde, quando a Emissora Católica dava o terço, ouvia-o. Depois, preparava o jantar e comia-o em cima duma secretária rústica, de madeira maciça. O prato era de alumínio branco às flores com caneca igual. 

Permitia a minha presença e a do mano Zé na varanda e até deixava que ficássemos na soleira da porta, quando acabado o jantar, agarrava no acordeão para tocar as músicas da Maria Albertina. Atitude que contrariava o que sô Santos e o Rocha Maneta diziam dele, o Chico Careca é ruim como as cobras.
Havia anoiteceres de distracção, sabe-se lá porquê e com quem, atrasando-se para a janta. Nessas alturas convidava-nos a comer com ele. O mano Zé nunca quis e eu também não. Sentia nojo do vinho a boiar na sopa de feijão entulhada de massa, cenoura, nabo e por vezes pão aos bocados, numa mistura asquerosa para as minhas entranhas. Quanto ao segundo, peixe, ou bacalhau cozido com batatas, hortaliça, feijão verde, ou, de vez em quando atum de conserva com batatas, cenouras, ovo e cebola. Tudo regado a muito azeite e algum vinagre. Comidas que abominava. Nunca o vi comer um bife com batatas fritas e ovo estrelado, como eu gostava. 
Acordei enjoada. Abri uma das gavetas dos congelados. Nada me agradou.
Tenho andado a chá de bolbo, torradas com compota, fruta cozida e pouco mais. Abri o armário da mercearia e tinha uma lata de atum a sorrir-me. 
Eureka! Terá dito a minha memória fotográfica. Contudo não me senti repugnada. Tacho ao lume, para cozer uma batata, uma cenoura, uma cebola e um ovo. Era mesmo isto que me apetecia. Comida simples. Como simples sou eu e são as minhas vivências, apesar de alguns desvios mais ostentosos acompanhando os tempos. 
Fiz o prato. Temperei-o. E espreitei o Chico Careca à secretária de madeira com o meu prato pronto a ser degustado.
Passou mais de meio século desde então. O que terá acontecido ao homem que todos diziam ser um osso duro de roer, ruim como as cobras?
Nas idas para a praia, ao passarmos na Samba o pai apontava uma cubata junto d' um imbondeiro, pertinho do morro e dizia, o Chico Careca vive além. Dizem que se amigou com uma quitandeira.
Sentei-me. Entre lembranças, paladares e o presente. Almocei. E soube-me pela vida.

m.c.s.